O embranquecimento do futebol brasileiro segundo a filósofa Sueli Carneiro

Enviado por / FontePor Milly Lacombe, no UOL

A entrevista que Mano Brown fez com a intelectual e filósofa Sueli Carneiro é histórica sob muitos aspectos, mas vou me restringir aqui a falar do trecho em que eles conversam sobre futebol.

Sueli, filha de um corintiano apaixonado, aprendeu a gostar do jogo através dos olhos do pai. Hoje, assiste à Premiere League, segundo ela, para ver os africanos jogando.

Vou fazer um parenteses aqui para estabelecer a diferença da nomenclatura que separa pretos, negros e pardos conforme explicada pela filósofa e também de acordo com a métrica do Censo.

Pretos são as pessoas de pele escura, retintas. Pardos são as pessoas de pele mais clara e que não se declaram brancas. Negro é a somatória desses dois grupos, pretos mais pardos, uma classe estabelecida pelos movimentos negros do Brasil para entender o tamanho da população que ele representa. As pessoas negras formam a maior parte da população brasileira.

O papo entre Brown e Sueli durou mais de duas horas e vale ser escutado na íntegra. Eles começam falando sobre extermínio da população negra: razões, métodos, ideologias. É uma aula. Mas, para o que interessa a esse espaço, vou direto para o minuto 52, quando ele pergunta a ela: Quantos negros tem na seleção brasileira, Sueli?

Antes de responder, Sueli deixa claro que gosta muito de futebol e que assiste a Premiere League porque é onde vê africanos jogando. “Por que ninguém encontra mais jogador preto aqui?”, ela pergunta em seguida.

Brown argumenta que esse talvez não seja mais o sonho de consumo da molecada preta. Sueli imediatamente discorda e questiona: “Como nossos meninos foram sendo substituídos por meninos de classe média brancos? Não é possível. Tem que se fazer essa pergunta. Eles não deixaram de desejar futebol. Eles têm sido gradativamente excluídos. Pega o campeonato francês: é uma profusão de gente preta como não se vê mais aqui no Brasil, que é o tal do futebol pentacampeão e que só foi pentacampeão graças aos jogadores negros. A eles nós devemos isso. Agora: como é que eles desapareceram?”

Nesse ponto Brown pergunta: eles não estão indo para outros esportes? E Sueli, em um tom mais elevado, diz: Coisa nenhuma! Estão sendo excluídos! E volta a falar da França, campeã mundial tendo maioria preta no elenco.

Ela então explica que a exclusão racial no Brasil é tão profunda que estamos preferindo não mais conquistar os títulos que costumávamos empilhar do que incluir os pretos.

Em seguida, recuperando um argumento de Brown na primeira parte da conversa, a filósofa diz de forma contundente: “E não me venha com teoria da conspiração porra nenhuma! Isso é conversa de branco pra cima da gente. Pega os índices de mortalidade da gente em qualquer nível. É teoria da conspiração que negros tenham morrido de Covid 70% mais do que brancos? Por que a gente morre de mortes previníveis e evitáveis o tempo todo? Por que a gente é mantido na indigência?”

Logo à frente, ela diz a Brown, em tom de reprimenda, que não se pode fazer esse tipo de concessão para o racismo, se referindo a chamar de teoria da conspiração a exclusão de negros da sociedade e, também, do futebol. “Nunca mais quero ouvir você falar em teoria da conspiração!”

Não é qualquer pessoa que tem a personalidade para chamar a atenção de uma lenda como Brown. Mas, se tem alguém que pode fazer isso, essa pessoa é Sueli Carneiro. Brown imediatamente concorda e diz que está embriagado de felicidade escutando ela falar.

Escutar Sueli Carneiro falando de futebol é aprofundar a noção de que o jogo não acontece numa arena separada da sociedade; ao contrário: está nela inserido.

Futebol é política, é economia, é cultura, é parte estrutural e estruturante do que somos. Exatamente por isso, o genocídio praticado contra a população negra e periférica desse país atinge em cheio o jogo que amamos. Não teria como ser diferente. E Sueli Carneiro, corajosa, diz isso de forma inédita e indisputável.

A entrevista é histórica, fundamental, indispensável. Para todos, todas e todes, mas especialmente para as pessoas brancas.

Aqui você acessa o papo na íntegra.

+ sobre o tema

Jovem é decapitada pelo ex-namorado em Rio Branco no Acre

Criminoso ainda abandou a cabeça da vítima na porta...

Para se apaixonar por quem quer que seja, faça isso

Escritora narra no 'The New York Times' como colocou...

Paola Carosella comemora sucesso de curso para travestis e trans

Durante três semana, Paola Carrosella, a chef de cozinha ítalo-argentina...

Meninas black power: “Não tenho vergonha de ser quem eu sou: negra”

Incentivada pelo trabalho do coletivo Meninas Black Power, estudante...

para lembrar

Um ato de resistência

Escrever é uma maneira de sangrar. A sentença escolhida...

“Violência aumenta com mais mulheres nas eleições”, avalia Talíria Petrone

O Brasil registrou, nos últimos cinco anos 327 casos...

Curso On Line: A história do Feminismo Negro no Brasil

Já divulgamos aqui no Blog alguns cursos de nosso...
spot_imgspot_img

Luta das mulheres voltou a pautar as ruas em 2024 e acendeu alerta para o retrocesso

A luta pelos direitos das mulheres no ano de 2024, que começou de maneira relativamente positiva para a luta das mulheres, foi marcada por...

Apenas cinco mulheres se tornaram presidentes nas eleições deste ano no mundo BR

A presença feminina nos mais altos níveis de liderança política permaneceu extremamente baixa em 2024. Apenas cinco mulheres foram eleitas como chefes de Estado...

Cidadania para a população afro-brasileira

"Eu gostaria que resgatassem um projeto desse sujeito extraordinário que foi Kwame Nkrumah, panafricanista, de oferecer nacionalidade de países africanos para toda a diáspora",...
-+=