O espaço íntimo do racismo. Por Julia Michaels

Na ‘Visita’ de hoje, Julia pergunta: “Quem conhece um médico negro?”. Se demorou mais de três segundos para responder…

Há poucos anos, Dudu do Morro Agudo, rapper e ativista, negro, adepto de boné, bermuda e tênis, foi visitar um amigo em Copacabana, o único morador negro do prédio dele. O porteiro mandou Dudu entrar no elevador de serviço. Explicando que ia visitar um amigo, ele se recusou.

A caminho do andar desse, o elevador social parou no quarto andar. Uma mulher aguardava-o, mas não entrou. Dudu seguiu caminho, mas permaneceu no elevador quando chegou ao andar do amigo dele. Descendo, o elevador parou novamente no quarto andar. A mulher ainda aguardava. Não entrou. Dudu desceu até o térreo e subiu novamente. A porta abriu no quarto andar. Dudu olhou para a mulher e sentenciou: “Eu tenho muito tempo. A senhora tem três opções. Ou entra nesse elevador comigo, ou vai de elevador de serviço, ou desce pela escada.”

Ela ficou imóvel. Na hora em que o elevador subiu pela terceira vez e parou novamente no terceiro andar, Dudu viu que a mulher não estava mais.

Quando eu estudava no ensino fundamental, numa escola pública de uma cidade rica ao norte dos Estados Unidos, havia um pequeno grupo de alunos negros. Não faziam aula comigo. Nunca cheguei a conversar com alguma moça ou rapaz. Almoçavam todos os dias na mesma mesa do refeitório, onde jamais sentei.

Na faculdade, particular e cara, também havia poucos negros. Uma vez andei no carro de uma aluna negra, porque o professor nos colocou para trabalhar num projeto em conjunto. Só sei que era negra porque logo que entramos no carro, ela, que tinha a pele bem clara, ligou a rádio numa emissora “negra”.

Nos anos 1960 nos EUA, durante a minha infância, os Estados Unidos implementaram políticas proibindo a discriminação racial e fomentando a proporcionalidade racial e a diversidade, na avaliação de candidatos para empregos ou de futuros estudantes universitários.

Mesmo assim, eu, no meu reduto de classe média branca, apenas conheci a teoria: que todos éramos iguais e todos deviam ter oportunidades iguais. A cor da pele não importava.
Minha prática começou quando cheguei no Brasil, há 33 anos. No aeroporto de Congonhas — na época, o aeroporto internacional de São Paulo – eu carregava um envelope enorme, dentro do qual estava um raio-x de meus pulmões, requisito para residir no país.

“Pode entregar pra essa pessoa de cor,” avisou um oficial de imigração, apontando. Eu sabia português e traduzi todas as palavras da frase dele na minha mente, mas de imediato não consegui entendê-la.

No dia seguinte, à mesa, a avó de meu então marido falou da empregada dela, enquanto a mesma nos servia, de uniforme e chapeuzinho preto, detalhes em renda branca.

“É negra, mas é limpinha,” comentou a avó.

Graças a Deus, muita coisa mudou no Brasil desde então.

Dudu do Morro Agudo contou a história dele, do elevador, na semana passada durante um bate-papo sobre a cor do carioca, parte da série mensal de debates “Rio de Encontros”. Instigou alguns jovens ali presentes, negros, a compartilhar suas próprias experiências de racismo e a trocar ideias sobre a identidade negra e suas expressões culturais.
Houve surpresas e questionamentos.

Igor, que publica um jornal comunitário no morro do Borel, fez referência a um momento que eu não imaginava existir. “Me descobri negro,” disse. Ele, que ostentava o maior cabelo “black” de todos os participantes, levantou o dilema de quem quer assumir a identidade negra, mas tem que “usar chapinha” para poder trabalhar.

Cleiça, que faz parte de um coletivo negro na UFRJ — e usa tranças — perguntou como lidar com as reações dos pais ao cabelo. Afirmou também que a faculdade deveria ser mais receptiva aos alunos negros.

Natália, moradora do Complexo da Penha, aluna da ESPM, falou do racismo por parte dos negros contra os brancos. Lamentou o fechamento de terreiros em favelas do Rio, onde um número crescente de traficantes de drogas estaria se convertendo a religiões evangélicas — e discriminando os negros de religiões afro-brasileiras.

“Será que os brancos estão se apropriando do funk, usando os negros para se promover?” perguntou Adam, que criou um projeto de dança na Cidade de Deus.

E a pluralidade?, lembrou Jorge, outro jovem. Por que apenas o branco e o negro? “Ninguém defende os pardos”, comentou.

“Temos a Comissão da Verdade para falar das atrocidades dos anos de chumbo,” disse Josely, que trabalha no Instituto Pereira Passos, da prefeitura. “Mas não há nada disso para a escravidão. Eu mesma sou negra e não conheço minha história”.

As perguntas levantadas por esses jovens darão pano para manga por muito tempo. No meu país, até com uma família negra na Casa Branca, continua o debate sobre raça e racismo.
Hoje no Brasil, os negros universitários que hoje repensam a identidade negra talvez sejam uma minoria dentro da população geral brasileira. Porém, ao questionar, experimentar, querer saber mais deles mesmos e dos outros, eles apontam o caminho para um futuro de mais respeito pelas diferenças.

Dudu do Morro Agudo, hoje com 35 anos, só lamenta ser calvo, na hora em que os negros brasileiros começam a libertar o cabelo e o ator negro Lázaro Ramos faz papeis de galã em novelas da TV Globo.

“Para quem quer saber se o racismo ainda existe no Brasil,” acrescentou, “sempre pergunto se a pessoa conhece um médico preto. Se demora mais de três segundos para responder, já sabe a resposta.”

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Fonte: Época

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