Carta aberta a uma mãe

Carta aberta de uma mãe que não sabe o que fazer e o que dizer diante da barbárie institucionalizada e friamente administrada e digerida pelo poder público e pela sociedade civil.

Por Mônica Francisco, do Jornal do Brasil 

Prezada sociedade brasileira e autoridades constituídas, venho por meio desta solicitar de vossas senhorias e excelências a sua preciosa atenção. Embora possa ser um pedido que se perca em meio aos seus importantes compromissos para discutir a crise política e os abalos nos setor  financeiro, o que para vossas senhorias e excelências talvez se constitua em algo muito mais digno de cuidado e devotada atenção, do que a vida de pessoas que aos vossos olhos não tenham o mesmo valor. Me parece estranho usar a palavra valor, sabendo que para mim e para muitos outros, ela não tenha o mesmo significado que para vós. Quero ressaltar que anseio para que seja equivocada essa minha afirmação.

Sei que historicamente nossos pais sequestrados de países africanos não foram alvo da solidariedade e da aceitação de vossos pais após o acordo que os tornou livres do sistema que os escravizava, e até mesmo daqueles que lutavam para que se deixasse de escravizá-los.

Pois bem, a capacidade de sobreviver foi transferida aos seus descendentes e a despeito de todo o esforço institucional em promover politicas oficiais de contenção de crescimento de nossa população, desde as políticas que se destinavam ao cerceamento do acesso à terra, estímulos ao aumento da população branca, escassez de moradias, entraves às possibilidade de acesso ao ensino em todos os seus níveis, controle de natalidade, mecanismos de impedimento de acesso pleno à cidade, à moradia e consequentemente à dignidade, sempre tendo por parte de nós os descendentes dos indesejados, a busca de alternativas de enfrentamento dessas situações, e o mais surpreendente aos vossos olhos, o aumentando da  nossa capacidade de resiliência.

Mas enquanto sobrevivíamos, a vossa contrapartida silenciosa, bem urdida, eficaz e refinada, demonstrando a hábil capacidade de vossas senhorias e vossas excelências em em transformar a cultura de intolerância negada com discursos inteligentes, e com estratégia primorosa, em refinada arma de pacificação de mentes e corações dos descendentes. Sim meus irmãos, somos pacificados sim. Sacudimos as correntes, abrimos as portas, entramos até nos lugares onde eles não nos querem, mas ficamos de joelhos quando arrastam nossos irmãos ao pelourinho e os oferecem como sacrifício e como espetáculo público de punição à nós os que tentamos resistir.

Foi assim que vimos seus capatazes, nossos irmãos que pacificados também, recebem o poder de mentira e o abraço falso do senhor que encena uma falsa amizade e o faz sentir como igual ao seus senhores, e com devotada e cega obediência, dilaceram seus irmãos como que em transe sádico de quem agrada o senhor que o deixa por um instante se achar parte de seu mundo. Assim excelências e senhorias, vocês rasgaram o meu coração de mãe, como as nossas mães eram dilaceradas ao terem seus filhos arrancados de si por vossos pais.

É assim, a dor delas é a minha dor, é o grito que não sai, é a humilhação de saber que isso não vos incomoda de nenhuma maneira. Vossa crueldade é incomensurável. Vossas senhorias se utilizam de porta-vozes que recitam como mantra a morte necessária do nosso povo para que vossos filhos e filhas andem tranquilos. Não importa se culpados ou inocentes, nossos filhos já estão condenados.

Não somos limitados em nossa capacidade de entendimento como afirmam, sabemos que não há erros ou falhas, há comando tácito para a execução do nosso povo, apregoada como mantra diariamente. Secretários de estado dizem que uma vida das favelas não tem o peso de uma vida nas vossas áreas de moradia. Vossas excelências e vossas senhorias deram 50 tiros na nossa dignidade, assim como o fizeram os açoites de vossos pais na dignidade dos nossos. Rogo que meus irmãos , assim como eu, deixemos de nos revoltar parcialmente, como afirmou Perdigão Malheiros ao escrever sobre nossos pais.

Por fim, chamamos a atenção de vossas senhorias, excelências e principalmente dos meus irmãos, irmãs e filhos e filhas, herdeiros de África, que há de chegar o dia em que deixaremos de sorrir e chorar e começaremos à ranger os dentes como previu Abdias do Nascimento.

“A nossa luta é todo dia. Favela é cidade. Não aos Autos de Resistência, à GENTRIFICAÇÃO, à REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL , ao RACISMO, ao RACISMO INSTITUCIONAL, ao VOTO OBRIGATÓRIO, ao MACHISMO, À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER e à REMOÇÃO!”

*Membro da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Consultora na ONG ASPLANDE.(Twitter/@ MncaSFrancisco)

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