A natureza zomba das construções sociais do sexo que reduzem tudo a duas categorias: macho e fêmea. E se, além destas, houvessem outras?
Por: Magaly Pirotte, do Brasil 247
Macho ou fêmea? Esta pergunta parece banal, mas a resposta é complexa. O que define o sexo de um indivíduo? Os cromossomos? Os hormônios? A aparência dos órgãos genitais? Que fazer quando estes elementos entram em contradição?
Desde meados do século 20, as organizações desportivas fazem testes para determinar quem está apto para concorrer na categoria feminina, com resultados pouco conclusivos e, muitas vezes, desastrosos para as atletas. Se o gênero se constrói socialmente, ancorado num modo binário masculino/feminino, no que diz respeito à biologia, a natureza simplesmente zomba dessas categorias.
Um artigo publicado em fevereiro de 2013 na revista científica norte-americana Nature voltou a abrir o debate sobre o sexo e a impossibilidade de o definir em termos binários. Segundo os biólogos, esta ideia está longe de ser novidade. Em 1968. Keith L. Moore definia, na publicação Journal of the American Medical Association, nove componentes da identidade sexual. Em 1993, Ann Fausto Sterling, num artigo publicado na revista The Sciences, sugeria a existência de cinco sexos.
Atribuição forçada de gênero
A compreensão do sexo como uma função humana de largo espectro permite levar em conta a grande quantidade de variações cromossômicas, hormonais ou outras do ser humano. São essas variações que fazem com que certas pessoas nasçam com órgãos genitais cuja aparência não corresponde à norma definida em termos médicos, ou com combinações de cromossomos menos habituais (XXY), ou com insensibilidade a certos hormônios. Por exemplo, uma insensibilidade aos hormônios andrógenos pode fazer com que uma pessoa com cromossomos XY possua testículos internos, ao mesmo tempo que tem órgãos genitais externos e características fisiológicas próprias do sexo feminino.
Na maioria dos casos, estas formas de interssexualidade não causam problemas de saúde. Contudo, a nossa concepção do sexo se ancora num sistema binário, que leva a que seja “atribuído” um sexo aos que nascem como intersexuais, através de cirurgia dos órgãos genitais e/ou terapias hormonais. Trata -se de uma mutilação muitas vezes não consentida, por ocorrer em tenra idade. É a opinião das associações de defesa dos direitos dos interssexuais. Em 2015, Malta tornou-se o primeiro pais onde as operações desnecessárias em crianças interssexuais são proibidas.
Ambiguidade sexual nos esportes
Nas modalidades desportivas de alto nível, as variações e a ambiguidade sexual não são toleradas. Desde o século 20 são efetuados testes de feminilidade, cujo objetivo é assegurar que cada concorrente está na categoria “certa”. Inicialmente, tratava-se de um controle ginecológico e morfológico do sexo de cada concorrente, da força muscular e da capacidade respiratória. Tais controles consistiam em constrangedores desfiles de atletas femininas nuas que eram examinadas e medidas ao detalhe.
Esse tipo de controle foi considerado demasiado humilhante e substituído em 1968 pelo teste do Corpúsculo de Barr, que permite revelar a presença de um segundo cromossomo X. Foi depois substituído pelo teste PCR/SRY, no qual se tenta estabelecer se o cromossoma Y está presente, ou não.
Numa entrevista recente, Anais Bohuon, autora do livro Le Test de féminité dans les competitions sportives. Une histoire classée X? (ainda não traduzido para o português), explica: “As alterações nos critérios do teste de feminilidade mostram as múltiplas dimensões do sexo biológico e a consequente dificuldade em determinar o “verdadeiro” sexo num debate que ultrapassa o mundo do desporto, colocando questões a toda a nossa sociedade. Esta dificuldade transforma-se em impossibilidade, porque há pessoas se que se revelam ‘interssexuais’, ou seja, impossíveis de classificar como macho ou fêmea. Mais ainda: um grande número de investigações veio sublinhar a impossibilidade de determinar de forma exata o sexo biológico de todos os indivíduos, sejam eles interssexuais ou não”.
Esta dificuldade é ilustrada pela atleta corredora sul-africana Caster Semenya. Tendo-se destacado nos 800 metros em 2009, a sua “feminilidade” foi posta em causa e ela foi obrigada a submeter-se a testes. Os resultados foram negativos para doping, mas mostraram que seu corpo produzia mais hormônios andrógenos que o da maioria das mulheres. Para competir, Caster terá de manter a taxa de testosterona abaixo de um valor arbitrário que é o novo limiar do sexo feminino. Este limite obriga essas atletas a regular a sua produção hormonal. Outras, nascidas com testículos internos, tiveram de os retirar.
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Um estudo com atletas de alto nível competitivo mostrou que 16,5% dos homens possuíam uma taxa de testosterona inferior à média masculina, enquanto 14% das mulheres tinha uma taxa superior à média feminina. Mas, se os pés gigantescos do nadador Michael Phelps lhe dão vantagem, ninguém sugere que ele os corte para continuar a competir.
ESPECTRO DO SEXO
Para alguns cientistas, uma pessoa em cada cem tem algum tipo de anomalia do desenvolvimento sexual. Por isso, se quiser saber se alguém é homem ou mulher, o melhor é perguntar.
Por: Equipe Oásis
“A ideia de só haver dois sexos é simplista”. É o que diz um longo artigo publicado em 18 de fevereiro de 2015 na revista científica Nature. Mesmo não sendo novidade na comunidade de biólogos, como salientou o jornal britânico The Guardian dias mais tarde – esta concepção de um “espectro” ou de uma “sucessão” de sexos está longe de ser conhecida do público. “A presença ou ausência de um cromossoma Y não chega para definir um macho ou uma fêmea de forma absoluta.
O sexo cromossômico de uma pessoa pode dizer uma coisa, mas as suas gônadas (ovários ou testículos), ou a sua anatomia, podem dizer outra”, resume a Nature, que acrescenta: “Para alguns cientistas uma pessoa em cada cem tem algum tipo de anomalia do desenvolvimento sexual”.
Estas anomalias não resultam necessariamente em patologias e não dizem nada sobre a sexualidade dos indivíduos afetados. No que diz respeito à genética, “a fronteira entre os sexos é ainda mais fluida”, afirma-se na revista. Ao mesmo tempo, “a hipótese comum, segundo a qual todas as células contêm o mesmo número de genes é errônea”, acrescenta-se, explicando-se assim doenças cromossômicas, como a Síndrome de Turner (quando o indivíduo só possui um cromossomo X em vez de um par) ou a Síndrome de Klinefelter (quando o indivíduo tem três cromossomos – XXY – em vez de dois).
Os cientistas descobriram que as células XX e XY se comportam de forma diferente, mas que isso pode acontecer independentemente da ação dos hormônios sexuais. Portanto, se quiser saber se alguém é homem ou mulher, o melhor é perguntar…
UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO PARA OS SENTIDOS
Robôs, aplicativos especializados, avanços da neurobiologia. O futuro nos promete sensações múltiplas e maior fluidez tanto em matéria de sexualidade como de gênero.
Por: Laura Barman (*) Fonte: The Wall Street Journal, Nova York
Quando tínhamos 10 anos, eu e a minha amiga Sarah encontrámos debaixo da cama dos pais dela um exemplar do livro The Joy of Sex (A alegria do sexo), que acabara de ser publicado. Nós o estudamos atentamente, como muitos jovens da época. Tivemos mais sorte do que os pais de Sarah que, tal como os meus, tiveram de se desenvencilhar das amarras sexuais consultando as revistas da National Geographic.
Hoje, os casais já não precisam tatear no escuro para descobrirem como dar prazer ao parceiro. A internet desmistificou o sexo para milhões de pessoas e todas as informações sobre o amor e a intimidade estão ao alcance do teclado.
No futuro, as novas tecnologias podem levar o sexo a um nível totalmente diferente. Já se encontram brinquedos sexuais por toda a parte, mas o futuro vai trazer produtos verdadeiramente audaciosos. Segundo os futurólogos, dentro de 10 a 15 anos haverá robôs de um realismo inacreditável, com quem poderemos trocar carícias ou até mesmo fazer amor. Poderemos conceber o companheiro perfeito, que nos irá sussurrar palavras doces exatamente no momento certo e com a voz certa. Os amantes virtuais, como Samantha em Her, o filme de Spike Jonze, serão uma realidade. Já existe um aplicativo chamado Invisible Boyfriend (namorado invisível) que envia mensagens de amor como um verdadeiro namorado.
Poderemos ter experiências sexuais reais sem contato físico. Um passo de gigante na prevenção de doenças! Será possível lançar-se nos preliminares ambicionados, explorar os nossos fantasmas mais loucos e ao mesmo tempo estimular os nossos parceiros com um clique do mouse, mesmo se estiverem no outro extremo da cidade ou em outro país.
Sexo sem contato físico
Ao mesmo tempo, a nossa compreensão da neurobiologia permitirá reproduzir o ato sexual, sem contato físico, estimulando diretamente o cérebro. 0 que não só proporcionará possibilidades infinitas como poderá melhorar muito a vida sexual de pessoas com deficiência. Os relacionamentos a grande distância serão mais comuns. À medida que o mundo for encolhendo e a tecnologia melhorando, poderemos encontrar a alma gêmea longe de nós e ficar em estreito contato virtual. Até poderemos procriar sem nos encontrarmos pessoalmente.
A Food and Drug Administration (FDA, autoridade sanitária americana) aprovou 20 medicamentos para tratar as disfunções sexuais masculinas. Quantos tratamentos aprovou para as mulheres? Zero.
Tomaremos produtos para amar melhor e aproveitar uma infinidade de intervenções médicas que nos permitirão ter orgasmos mais poderosos, tornarmo-nos ao mesmo tempo mais esbeltas, mais bronzeadas e mais libidinosas, e até aumentar o tamanho do nosso ponto G.
Deixará de ser preciso definir a orientação sexual. Há uma nova vaga de homens e mulheres jovens que expressam a sua sexualidade de formas diversas. Classificam-se como “de preferência heterossexual”, mas declaram-se abertos ao amor homossexual. E a comunidade transgênero dá passos gigantes em matéria de aceitação e reconhecimento. Há dez anos, a maioria das pessoas nem sequer conhecia o termo correto para designar uma pessoa trans.
Hoje, séries televisivas como Transparent, da Amazon, conhecem um grande sucesso e a atriz Laverne Cox, estrela da série da Netflix Orange is the New Black, é a primeira atriz transgênero a ser nomeada para o Emmy Awards.
No futuro, o gênero será tão fluido como o que está acontecendo neste momento com a orientação sexual. Na próxima década, surfaremos uma onda onde buscaremos o maior estímulo possível o mais rapidamente possível, relações breves e transitórias e a última dica da moda para multiplicar as sensações. A boa notícia é que as relações sexuais serão mais seguras e mais exploratórias do que nunca, dadas as possibilidades virtuais. A má notícia é que vamos assistir a um aumento da dependência do sexo e a uma queda da ligação emocional com o parceiro.
A falta de ligações reais e autênticas causará depressão e solidão. Haverá talvez um movimento de militantes contra a tecnologia que irá rejeitar estes avanços em matéria de vida e comportamento sexual. Essa luta durará algum tempo, mas a liberdade prevalecerá. Não há como se lutar contra a história.
Finalmente, o ano de 2050 não será tão diferente do ano de 1050. Mesmo que circulemos em naves espaciais ecológicas, vamos estar sempre à procura do encontro especial e único, vamos continuar flertando com o rapaz bonitão, com a garota charmosa ou com o indivíduo transgênero que viajar a nosso lado na nave espacial.
Podem me chamar de otimista, mas acredito que a natureza nos levará sempre de volta à relação alma a alma. Quando olho para o futuro da sexualidade e das relações amorosas, é isso o que vejo: uma abundância de amor e uma comunidade de pessoas que não têm medo de abrir o coração a todas as possibilidades.
(*) Laura Barman é terapeuta sexual e professora associada de psiquiatria e ginecologia da Faculdade de Medicina da Northwestern University, em Chicago.