O privilégio magro de ser feminista e poder ignorar o que a gordofobia da Jennifer Lawrence representa – Por: Renata Mol

E a palavra gorda. Eu só acho que deveria ser ilegal chamar alguém de gorda na TV. Se estamos regulando cigarros, sexo e palavrões por causa do efeito que têm na nossa geração mais nova, por que não estamos regulando coisas como chamar alguém de gorda?

Estas palavras foram ditas pela atriz Jennifer Lawrence recentemente numa entrevista.

Cigarros. Sexo. Palavrões. Pessoas gordas. Tudo isso está mesmo na categoria de COISAS que quanto menos visibilidade tiverem, melhor para as pessoas? Não vou entrar em detalhes sobre (a falta de sentido em) cada exemplo que ela deu (e ela não é a primeira pessoa a fazer essas comparações), mas preciso comentar sobre a gordofobia dela porque considero alarmante como feministas estão ignorando, amenizando e/ou defendendo esses discursos e o que eles representam. A Jennifer é apenas um exemplo.

A palavra gorda não é uma coisa, é uma identidade, é algo que PESSOAS são. Ela não deve ser proibida por lei ou por qualquer senso comum ignorante e estigmatizador. Porque proibir a palavra gorda de ser dita tem como origem a vontade de proibir as pessoas gordas de existirem. Ela poderia ter dito que seria melhor se banissem a gordofobia da tv, se proibissem tratar mulheres gordas de maneiras tão cruéis, ou mesmo ter pedido para que a palavra gorda não seja mais usada como ofensa. Mas não, ela quer que essa palavra seja banida, ela não quer que nossa existência seja sequer mencionada. Além de ter o privilégio de não precisar pensar nas consequências disso para meninas e mulheres gordas.

Como tentei explicar nesta série de tweets (inclusive com duas fotos dela “fantasiada” de gorda), comentários como este da Jennifer podem ter a intenção de mostrar preocupação com a pressão sobre os corpos das mulheres tanto em Hollywood como na sociedade. Mas, como sempre deixo claro, eu não me importo com boas intenções porque não acho que devem ter qualquer relevância quando falamos sobre opressão. Porque no fim ela não se posicionou exatamente contra o controle dos corpos. Na verdade, ela se apropriou de experiências que não são dela para usá-las em seu benefício.

Ela é uma atriz que tem um público enorme, a maioria de mulheres jovens, e resolve dizer que a palavra gorda deveria ser proibida na tv. Que tipo de mensagem essa declaração passa? Ela sabe que mulheres gordas existem, mas ela quer proibir que se fale sobre nós na tv? O nojo que ela tem de pessoas gordas atinge o nível de ela querer que uma lei seja criada para ninguém nunca mais lembrar da nossa existência na mídia. Porque é essa a mensagem que passa para mim, que sou gorda. Ela quer ignorar a opressão e todos os estigmas que sofremos porque a palavra gorda existir significa que pessoas gordas existem e ela não quer ter qualquer relação com essas pessoas?

 

Mas mais importante: ela é magra, branca, rica, mundialmente famosa (ou seja, com influência), faz piada sobre comer e todo mundo acha lindo. São exatamente todos esses privilégios que fazem dela uma pessoa que NÃO deveria se achar porta-voz dessa questão, ainda mais por tamanha ignorância e desprezo que ela demonstra ter em relação a pessoas gordas.

Toda essa celebração de como a Jennifer fala que gosta de comer não aconteceria se fosse qualquer atriz gorda falando o mesmo. Vale muito a reflexão. Uma magra que gosta de comer é celebrada. Se fosse uma gorda, ela seria crucificada. Significa, entre várias coisas, que nessa sociedade pessoas gordas (principalmente mulheres) não merecem o direito de comer. Significa que essa associação da comida com pessoas gordas continua a ser disseminada porque é a mais fácil de todo mundo acreditar. As pessoas não são gordas pelo mesmo motivo e comida não é o principal deles.

Eu vi muita gente justificando essa gordofobia da Jennifer Lawrence. As pessoas que tentaram explicar para mim o que ela quis dizer parecem estar mais preocupadas com o impacto do que eu digo sobre ela do que com o impacto da mensagem que ela está passando com essas declarações. Sem contar que querer explicar para uma gorda por que “não é bem assim” algo extremamente gordofóbico é um insulto enorme. Se essas mesmas pessoas não justificam machismo, por que estão justificando gordofobia? Ou acham que gordofobia não é uma ramificação do machismo?

Como se tudo isso não fosse suficiente, recentemente ela voltou a mostrar sua gordofobia. No filme Trapaça ela trabalhou com o ator Christian Bale, que engordou para fazer o personagem. Ele não ficou gordo, só com um pouco de barriga. Mas essa barriga foi suficiente para ela dizer o seguinte:

Eu finalmente posso beijar o Christian Bale e ele está um cara bem gordo.

As pessoas que defendem tudo que a Jennifer faz e fala parecem não dar a menor importância para toda essa gordofobia. Dia 14/01, o Blogueiras Feministas publicou a tradução de um texto sobre como esse discurso da Jennifer sobre corpo é problemático. A maioria dos comentários é de pessoas criticando o texto. Não a gordofobia da Jennifer, e sim o texto que tenta apontar, ainda que de forma não muito clara, a gordofobia dela.

Trechos de alguns comentários:

É bem provável que o colesterol e a glicemia da Melissa McCarthy estejam super controlados e em melhores níveis que os da Jennifer Lawrence.
Qual é a relevância disso? O que uma pessoa que diz algo assim quer além de ser extremamente desrespeitosa? A saúde da Melissa não está aberta para debate (nem a da Jennifer), o corpo de mulheres gordas não é propriedade pública.

Então penso que, enquanto lutamos pelo direito de todas as mulheres a serem como são sem serem criticads, no dia que a Jennifer Lawrence não precisar falar de dieta ou peso, estaremos mais perto do dia que a Melissa McCarthy esteja plenamente livre para ser como é.
Magras primeiro, gordas só depois. Porque somos consideradas uma segunda classe de mulheres.

Bom artigo, muito mais pertinente nos EUA, onde a intolerância com a obesidade é imensa, mas acho pegação de pé” e ”acho que essa matéria não entra muito nos padrões brasileiros, porque aqui ainda não temos todo esse preconceito todo com pessoas acima do peso” (de pessoas diferentes)
Aqui só não é pior do que lá em questão de propaganda de remédios e dietas na tv. De resto, é tão horrível quanto. Não acredita? Acompanhe uma mulher gorda ao médico (que irá negligenciá-la) ou quando ela estiver à procura de um emprego (que ela vai perder para um homem magro menos qualificado). Quem não sabe o que acontece tem o privilégio de poder ignorar essa realidade.

a postura da Jennifer diante do mercado de Hollywood é considerada louvável por mim
A postura dela é ofender pessoas gordas e se apropriar de experiências de mulheres gordas. Isso não é louvável, é gordofobia.

Na maioria desses comentários, as pessoas igualaram as experiências de mulheres gordas às das magras, invalidando a opressão que gordas sofrem e distorcendo o grau de pressão que magras passam. Opressões e discriminações não são transferíveis. É impossível pessoas que têm privilégios sobre grupos marginalizados passarem pelo mesmo. Ignorar a opressão que mulheres gordas sofrem para comparar com comentários maldosos sobre seu corpo é privilégio magro. O que a Jennifer Lawrence e quem a defende têm é privilégio magro. Não há comparação porque xingamento não é opressão institucionalizada e sistemática. Pessoas magras não são marginalizadas por serem magras.

É simples: pessoas magras não são vítimas de gordofobia, as cis não são vítimas de transfobia e as brancas não são vítimas de racismo. O feminismo dominante é magro, branco e cis. Quem está nesse perfil já tem espaço sem precisar lutar o tempo todo por ele. O nome disso é privilégio e ele precisa ser reconhecido.

Usar e explorar conversas sobre gordofobia para focar nas experiências de pessoas magras é privilégio magro. Porque é o mesmo que ter um passe livre na mão para invadir experiências que não são suas e se apropriar dos efeitos que não te atingem diretamente. Pessoas magras têm nojo de/não querem ser gordas por causa do estigma sobre pessoas gordas. Isso não é ser vítima de discriminação. Portanto também é tão ofensivo a Jennifer falar que é considerada gorda (ela também já usou “obesa”) para os padrões de Hollywood. Ela sabe que é magra, mas escolhe banalizar corpos diferentes do dela.

Pessoas magras têm se esforçado demais para silenciar as experiências e as vozes de pessoas gordas. No feminismo isso tem sido bastante frequente também. Há uma preferência quase geral por justificar falas gordofóbicas em vez de lutar contra gordofobia. Sendo bem clara: eu não posso mais me importar com essas explicações e queria que mais pessoas também não se importassem, porque isso é desgastante demais. Nós precisamos nos importar com o que motiva as pessoas a justificarem gordofobia. Nós não podemos achar normal tantas meninas defendendo atitudes tão discriminatórias de uma pessoa claramente gordofóbica. O que precisamos fazer é começar a questionar e desconstruir esse discurso e não dar mais espaço a ele.

IMPORTANTE
Não aceitarei comentários dizendo que entendi errado, que não houve gordofobia, que não foi isso que ela quis dizer, que pessoas magras também são marginalizadas e qualquer mensagem do tipo. E ninguém precisa me avisar que é gorda para comentar. Pessoas gordas não são robôs com programações idênticas. E o fato de não concordar comigo não apaga essa gordofobia toda.

Gordofobia que vem de casa

Gordofobia: um assunto sério

 

Fonte: 

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