Nessa lacuna, muitos casos de violência contra a mulher acabam sendo invisibilizados. Outros podem receber decisões judiciais injustas tanto para a vítima quanto para o agente agressor
Por Caroline Oliveira, da Carta Capital
Segundo o site Think Olga, numa pesquisa com oito mil mulheres em 2015, 90% delas já trocaram de roupa por medo de assédio
Recentemente, o juiz José Eugênio Souza Neto, do Tribunal de Justiça de São Paulo, classificou como importunação ofensiva ao pudor o caso do homem que ejaculou no pescoço de uma mulher em um transporte público.
A decisão do juiz levou ao debate a cobertura jurídica de proteção a vítimas de crimes sexuais. Atualmente, segundo o Código Penal, reformado em 2009, e a Lei de Dignidade Sexual, casos como esse podem ser enquadrados como a tipificação utilizada pelo juiz ou estupro, dependendo da materialidade do fato.
A primeira não chega a ser um crime, mas uma contravenção penal, e a pena é uma multa. Já o segundo é caracterizado como crime hediondo e a pena mínima é uma reclusão de seis anos. Para ser tipificado como estupro, o crime precisa ter materialidade de violência física ou grave ameaça para constranger a vítima. Lembrando que na área jurídica, constranger significa obrigar.
A advogada Marina Ruzzi, integrante da Rede Feminista de Juristas e atuante na advocacia Braga&Ruzzi – advocacia para mulheres, explica que mediante a reforma de 2009, o crime de estupro, que se caracterizava somente pela penetração vagínica, passou a contemplar todos os atos libidinosos diante de violência, constrangimento ou grave ameaça. “Até porque excluía crimes, por exemplo, contra crianças do sexo masculino”, exemplifica Ruzzi.
No entanto, esse tipo de violação geralmente não acontece somente diante de violência ou grave ameaça entendidas pela área jurídica, até “porque a vítima sequer tem a chance de reagir”, como a mulher que passou pela situação de violência no ônibus, entende Ruzzi. Ela afirma que isso gera uma invisibilidade sobre esse tipo de agressão, causando julgamentos como o do juiz José Eugênio Souza Neto.
Fernanda Matsuda, socióloga, advogada e consultora do Instituto Patrícia Galvão, que categoriza o caso como um estupro, lembra que é muito comum mulheres andarem com trocas de roupas nas bolsas, porque invariavelmente “chegarão sujas no trabalho”. Matsuda afirma que “o fato da mulher não conseguir sair de perto da pessoa que está violando os seus direitos é uma violência, para mim é estupro”, conclui.
A advogada Carolina Gerassi, que atua na proteção integral da mulher e nos direitos LGBT, enxerga que o constrangimento e a violência estão intrínsecos ao próprio ato. No entanto, juridicamente entende que não houve violência ou grave ameaça direcionados à obtenção de êxito na prática do ato, como consta nos documentos do juiz.
“A violência prevista no tipo penal de estupro não se refere à reprovabilidade do ato em si, mas se volta àquela caracterizada pelo constrangimento especificamente voltado para o fim de praticar ou fazer deixar que se pratique o ato libidinoso”, afirmou Gerassi.
Ela explica que descaracterizar esses fatores condicionantes ao ato viola o princípio da reserva legal, que garante que a interpretação do Judiciário seja feita de maneira restritiva, para que não comporte prejuízo ao réu.
“Esse princípio integra todo um sistema de garantias constitucionais que visa restringir ao máximo a atuação do Estado na vida do cidadão, de modo a impedir arbitrariedades”, afirma Gerasi.
Na mesma pesquisa, 85% das mulheres afirmaram já ter sofrido com ‘passadas de mão’ (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Vácuo jurídico
Nesse sentido, Babi Souza, idealizadora do movimento Vamos Juntas?, criou uma petição online, na plataforma Change.org, que visa resolver esse vácuo jurídico entre a importunação ofensiva ao pudor e o estupro para penalizar esses tipos de violência contra a mulher.
Souza conta que usou como referência a legislação argentina. No ano passado, Buenos Aires aprovou uma lei que passou a penalizar esse tipo de violência determinando multa e serviços comunitários aos agentes agressores. Países como Bélgica, Índia, Peru, Portugal e Reino Unido já criminalizam esse tipo de assédio com penas que podem chegar até sete anos.
“Isso fez eu perceber que não existe uma lei como esta no Brasil”, afirma Souza. Ela entende que o vácuo jurídico gera julgamentos como o citado. “Aqui nós denunciamos e contamos com a sorte. Se tivéssemos uma lei específica seria mais fácil um juiz como esse não julgar da cabeça dele”, lamenta.
Caso o abuso sexual em público passe a ser tipificado como um crime, Ruzzi entende que a pena deve ser intermediária entre a punição da importunação ofensiva ao pudor e o estupro. Carolina Gerassi também concorda que deve haver proporcionalidade em relação às outras penas imputadas a condutas já tipificadas.
Atualmente, a maioria dos casos de assédio sexual em público são enquadrados como importunação ofensiva ao pudor e aí “basicamente não acontece nada”, afirma Ruzzi. Ela acredita que todo crime precisa de uma tipificação muito específica, “caso contrário, corremos o risco de colocar pessoas nas prisões por questões arbitrárias”.
Judiciário
Ainda que exista o princípio da reserva legal, muitas vezes o “Judiciário entende que a culpa é da mulher”, afirma a advogada da Braga&Ruzzi. A medida assegura uma interpretação jurídica não extensiva, caso contrário a segurança legal se perde.
No entanto, o sistema de justiça nunca atuou favoravelmente aos direitos das mulheres, entende Matsuda. “A mulher que sofre violência sexual hoje não encontra um atendimento adequado. Estamos falando de um país em que a mulher não encontra um aborto legal mesmo em casos de estupro”, lamenta.
A consultora do Instituto Patrícia Galvão afirma que decisões como a do juiz e a atuação do sistema de justiça servem como um desestímulo para que as mulheres façam a denúncia. “O que essa decisão fez foi passar para a sociedade que a dignidade daquela mulher não precisa ser protegida tanto quanto um celular”, conta.
Matsuda explica que o furto é um crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa. No entanto, para ela, caso o homem que ejaculou no pescoço da mulher tivesse furtado um celular e passasse pelo juiz com 15 passagens por furtos, ao invés de crimes sexuais, ele seria mantido preso.
“Não tenho dúvida nenhuma, porque os crimes patrimoniais são duramente punidos. E a dignidade da mulher vale menos que o celular dela. São essas as expressões que lemos nos processos judiciais”, termina.
Saídas
Além de resolver essa lacuna jurídica. As especialistas apresentam a necessidade de ações de prevenção da violência contra a mulher. “Podemos conseguir um artigo de lei, mas não será o suficiente”, afirma Gerassi.
“Acho que o sistema de justiça tem uma resposta a dar e importante aprimorá-la. Mas não deve ser a única resposta, devemos investir no debate público, na educação, na questão da melhoria dos transportes”, entende Matsuda.
Ruzzi elenca como possibilidades as campanhas contra o assédio nos espaços públicos, como nos ônibus e metrôs e agentes públicos mais capacitados para lidar com a demanda das mulheres.
“Qualquer mudança legislativa deve vir acompanhada de um debate com a população para não correr o risco de fazer uma lei que não ajudará significativamente as mulheres”, termina Ruzzi.
Segundo Gerassi, a misoginia é institucionalizada. “Basta lembrar que até 2005 diversos crimes sexuais contra as mulheres condicionavam sua ocorrência ao status de “mulher honesta ou virgem”.
Fora isso, o agressor poderia ter extinta sua punibilidade se tornar imputável caso se casasse com a vítima, “já que não se tratavam de crimes contra as dignidade e liberdade sexuais mas sim contra os costumes e à honra das famílias”, explica.
“Se o desejo é de uma punição penal mais severa aos abusos sexuais praticados nos ambientes públicos, há que se pensar em um projeto de lei que crie um figura típica que se adeque perfeitamente à conduta que se pretende criminalizar”, conclui Gerassi.
Projeto de Lei
Na tentativa de resolver esse vácuo jurídico, ainda em 2017, a senadora Marta Suplicy apresentou ao Senado um projeto de lei que prevê o crime de molestamento sexual. Em defesa ao projeto, a senadora apontou a inadmissibilidade de “atos violentamente ofensivos e com possíveis graves repercussões para a saúde mental e a autoestima da vítima serem enquadrados como mera contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor”.
No entanto, para Ruzzi, o projeto de lei da senadora comete o mesma falha da legislação atual ao definir o crime mediante constrangimento ou molestamento diante violência ou grave ameaça usando novamente o exemplo o caso do ônibus em que a mulher não teve condições de reagir.
Matsuda destaca outro ponto falho no texto legislativo: a possibilidade de internar o agente violador sob critério do delegado. Para ela, existe uma patologização dos agressores sexuais. Apesar de entender essa lógica como perversa ao desresponsabilizar o agressor e a sociedade de uma violência endêmica contra a mulher, não vê o sistema de justiça como porta de entrada para tratamento mental.
“A necessidade de um olhar multidisciplinar para a pessoa do agressor não afasta a urgência do poder público e da população olharem para uma verdade incontestável: há um discurso social e institucional bem enraizado de naturalização da violência de gênero e da violação dos direitos e autonomia das mulheres que precisa ser desconstruído”, conclui Gerassi.