Parem de nos matar – por Maria Clara Machado

Em crônica publicada em janeiro de 1915, intitulada “Não as matem”, o escritor Lima Barreto, estarrecido com o assassinato de mulheres por seus companheiros, clama pela vida delas: “Não as matem, pelo amor de Deus!”. Um século depois, percebemos, não o enfrentamento do assassinato sistemático de mulheres por homens, mas a banalização da questão. Basta uma simples pesquisa na internet com os dizeres “homem mata mulher”, “inconformado com o fim do relacionamento”, “serial killer”, e incontáveis registros desses crimes surgem na tela. Para exemplificar, cito apenas algumas dessas mortes noticiadas recentemente no Distrito Federal, a de uma mulher de 26 anos, advogada e funcionária pública, e a outra, de 50 anos, ajudante de cozinha. Elas foram mortas por assassinos confessos de mulheres, após serem abordadas em pontos de ônibus. Motivo: desejo dos assassinos de estuprá-las e não serem reconhecidos pela policia.

Por Maria Clara Machado para o Portal Geledés

POLONEZ / SHUTTERSTOCK

São tantos os casos, que podemos duvidar do caráter “doentio”, geralmente alardeado nas manchetes dos jornais, dos assassinos, descritos como “serial killer”, “doente”, mentalmente instável”, como se esses não fossem comportamentos assustadoramente comuns entre a população do sexo masculino. Quer dizer, se há tantos homens que matam mulheres, tão assiduamente, será que esses comportamentos podem ser qualificados de fora da curva, anormais ou infrequentes? Será que tantos homens assim são mentalmente doentes e instáveis? Eu acredito que não. Mas, então por que os homens matam tantas mulheres, por que a mulher que saía para o trabalho ou a assistente de cozinha que encontraria sua amiga num domingo foram brutalmente assassinadas? O que elas têm em comum: são mulheres que ousaram sair de casa. Mas quem dera o lar fosse também um lugar de acolhimento. Ledo engano, são os próprios companheiros os que mais assassinam as mulheres. Desde 2015, esses crimes são caracterizados pelo Código Penal como feminicídio.

Feminicídio

A tipificação do crime é fundamental para mapear os assassinatos cometidos contra mulheres, por serem mulheres (os assassinos não matariam homens pelos mesmos motivos) e ajuda a revelar, por exemplo, que, no Brasil, 13 mulheres são assassinadas a cada dia e que o país é o 5 mais letal para nós, mulheres, segundo o Mapa da Violência. Longe de ser um termo da moda, o feminicídio existe desde o século XIX e ganhou força com o trabalho de ativistas como a sul-africana Diana Russel, na década de 70, tendo sido incorporado na legislação de outros países também.

Aparentemente, Lima Barreto, já tinha consciência da semântica da coisa antes mesmo de o conceito ser popularizado, quando escreveu sobre os homens que matam mulheres nos idos de 1915: “Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada…O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo”.

A legislação avançou no Brasil, mas os costumes seguem arraigados à logica descrita por Lima Barreto. O “obsoleto domínio à valentona”, do qual o autor fala, na verdade, ainda é bem atual e deixa mais da metade da população brasileira, do sexo feminino, em situação de guerra civil, com seus direitos ameaçados: o direito à vida e à liberdade sobretudo.

Repensando as estruturas

Uma sugestão: talvez precisemos discutir mais, com quem ainda não percebe a relevância da tipificação do crime de feminicídio, por exemplo, por que homens ainda acreditam que têm direito de decidir sobre os desejos de uma mulher, ou por que seus desejos são tanto mais pungentes que legítimos.

Discutir por que as mulheres são vistas como cidadãs de segunda classe, subjugadas, incapacitadas, que devem obrigação e obediência aos homens e que lhes devem, portanto, assegurar a satisfação de seus desejos em detrimento dos delas.

No entanto, discutir essas questões de respeito mútuo entre pessoas de sexos diferentes, independência, liberdade e igualdade parece se chocar diretamente com a ordem estabelecida, embasada pelo pensamento cristão ocidentalizado que rege as sociedades ocidentais e ocidentalizadas. É colocar em cheque a ordem naturalizada em que a mulher existe para servir o homem, e em que o homem, cujos impulsos não poder controlar, deve subjugar a mulher, para ser considerado um homem forte, viril. Precisamos urgentemente colocar em questão o papel da mulher na família tradicional, em que ela deve ser “recatada e do lar” e, portanto, restringir-se ao domínio privado da casa e aos anseios do seu dono, não tomar transporte público, não lhe causar ciúmes, dar-se ao respeito.

De modo que, discutindo essas questões, percebemos logo que o problema estrutural passa hoje à esfera individual e a culpa pelas agressões, pasmem, recai sobre as agredidas, as espancadas, as estupradas e mortas, que, afinal, não tomaram as devidas precauções que evitariam os comportamentos masculinos esperados. Mas o que são os comportamentos esperados?

Repensar nossas práticas sociais, nossas interações sociais e nossa estrutura social urge para que possamos tentar encontrar novas maneiras de assegurar a todas as pessoas direitos básicos para vivemos em sociedade. O resultado é que compomos hoje uma sociedade desigual no acesso a direitos.

Lembramos que o artigo 5 da CF considera todos “iguais perante a lei…garantindo a todos o direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Na prática, o direito das mulheres vale menos que os dos homens. Se for negra, a mulher recai em estruturas múltiplas de negação de direitos, assunto que renderia outro artigo.

Como seres humanos, diferimos dos outros animais em alguns aspectos, como em poder acumular conhecimento. Quer dizer, temos o imenso privilégio de poder aprender com nosso passado para tentar construir um futuro muito melhor, desde que aceitemos repensar nossas práticas. No entanto, quando rejeitamos completamente o debate, estigmatizando discussões incontornáveis como a de gênero, por exemplo, que busca entender os papeis sociais adotados ao longo do tempo e das culturas por pessoas do sexo masculino e feminino, fundamental para enfrentarmos com bons elementos de combate o desastre que é o assassinato sistemático de mulheres, rejeitamos a possibilidade de perceber como essas práticas são forjadas. Quando conhecemos o movimento que busca igualdade de direitos para todas as pessoas, homens e mulheres, desmistificamos o feminismo.

Mas, ao estigmatizarmos o debate, travamos a roda da história e o passado deixa de nos ser inteligível, deixa de fazer sentido como processo histórico em que nos, os agentes, podemos intervir, para ser apenas a repetição de padrões para os quais não nos atentamos criticamente. Passamos a tomar como natural e apenas biológico o que também é prática cultural e deixamos recair sobre o indivíduo o que é estrutural. Para quando a mudança clamada por Lima Barreto? Um século não foi suficiente. Milhares de mulheres pereceram pelo caminho. Hoje, choramos as mortes de tantas de nós, enquanto resistimos para que não sejamos nós as próximas. E gritamos nós mesmas: Parem de nos matar!


 Jornalista, mestre em Literatura e Civilização dos Países Lusófonos pela Paris Sorbonne. Doutoranda em Literatura pela Sorbonne Nouvelle e pela Universidade de Brasília, prepara uma tese sobre a literatura autobiográfica de Carolina Maria de Jesus e suas influências na França. É servidora pública do Ministério da Educação desde 2006.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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