Passeio pela história da comida afro-brasileira

 

Vilson Caetano fala sobre as delícias da cozinha afro-brasileira

 

Fonte:Mundo Afro

Por Vilson Caetano

Africanos e africanas desde cedo influenciaram a economia da cidade de Salvador e Recôncavo baiano. Um trabalho realizado nos arquivos da cidade de Cachoeira, por exemplo, foi capaz de nos revelar ocupações variadas. Certo é que muito antes da economia entrar em declínio no século XIX, homens e mulheres negras transitaram nas cidades com gamelas e tabuleiros, verdadeiros altares andantes onde iguarias africanas alternavam-se o tempo todo com comidas, ora de origem indígena,  portuguesa, ora moura, africanizadas pelos sentimentos e modos de preparar que faziam referência a um passado que a escravidão não foi capaz de apagar.

Autores como Pierre Verger e Roger Bastide nos legaram trabalhos bastante ilustrativos sobre a importância da arte de mercar e do mercado para os diversos grupos que nos constituíram. Mercado este, atravessado de sacralidade, fato que levou alguns autores à confusão entre a comida ritual e as vendidas nas ruas. É bem certo que muito antes da constituição dos cultos descritos a partir do século XIX, as ruas sempre conheceram “comidas africanas”.

O professor de grego Vilhena, nas suas famosas cartas, nos informa sobre algumas destas iguarias, pena que poucas delas permaneceram no tabuleiro, não cedendo espaço aos modismos e invenções que na atualidade acompanham a cozinha afro-brasileira.

Como esquecer das chamadas “carambolas”, mulheres citadas por Vilhena que regulavam senão a economia,  parte dela, impondo seus preços aos peixes comercializados numa das portas da cidades?  Chamadas de atravessadoras, estas libertas foram motivo de atenção.

E como não falar sobre as mulheres que vendiam nas suas gamelas carnes como mocotó, fato, sarapatel e outras iguarias ainda hoje condenadas pelo “nutricionismo”, ora amparado pelo discurso higienista, ora pela busca de comidas mais saudáveis?

Gosto muito de uma tela de Debret que retrata a venda nas ruas da cidade antiga do Rio de Janeiro. Vale a pena contemplar os tachos de angu justapostos, denotando que tal iguaria já havia caído no gosto popular. E o vatapá aclamado nas mesas parisienses, segundo Câmara Cascudo? Outro exemplo de iguaria afro-brasileira no mundo.

Não podemos deixar de citar o velho Gilberto Freyre que atento chamou a atenção para os doces dos tabuleiros que nas ruas de Recife rivalizavam com os que saiam dos conventos. Falando em doces, onde foi parar a “amoda”? Será que as doceiras “perderam o ponto”, ou a mistura de rapadura com farinha de mandioca e gengibre não sobreviveu aos novos gostos? E o aberém? Segundo Manuel Querino, transformado em refresco.

Este sim, ainda podemos encontrar em alguns terreiros de candomblé como comida litúrgica. Talvez a sua permanência  se explique por fazer parte de iguarias que ninguém tem acesso à sua feitura que não se vê nem a panela, nem o fogo e muito menos a  fumaça. É comida sobre a qual ninguém fala, ou não está autorizado a falar pelo “segredo”.Aberém também já foi comida de rua.

Hoje a moda é o akarajé, não o akará bem parecido com os que ainda hoje podem ser encontrados nas ruas de algumas cidades africanas, mas o semelhante ao hambúrguer, acompanhado com o refrigerante de cola. Resguardadas as criticas, que bom que ele permaneceu, juntamente com o abará, a passarinha e o bolinho de estudante. Até a pimenta ficou menos picante, respeitando a exigência da demanda turística.

Não podemos deixar passar as “mulheres do mingau”. Mingaus de milho, tapioca, carimã que continuam presentes dando “sustança” aos  fregueses, sem falar no mungunzá e no cuscuz de tapioca que nunca deixaram de ser itinerantes. Hoje transitam nos carrinhos empurrados pelos “meninos”, resistindo a todo e qualquer “discurso higienista” que insiste sobre os perigos da contaminação através das “comidas de rua”.

Bom mesmo foi que estas comidas deram visibilidade nos últimos anos à inserção do homem negro e da mulher negra na economia da cidade de Salvador, os tirando do anonimato e da classificação na maioria das vezes preconceituosa do mercado informal, o que para nós é excelente, pois traz a memória de Maria de São Pedro, Cecília do Bonocô, Aninha e tantas outras mulheres que através do comércio de elementos rituais ou iguarias reforçaram os laços entre partes do Continente Africano, a Ásia e o Brasil.

Estas “mulheres de saia” merecem mesmo o título de “mulheres do partido alto”, ou “homens de elite” como Martiniano Eliseu do Bonfim e Felisberto Sowzer, exímio conhecedor de inglês, conhecido como Benzinho, descendente direto da família Bangboxé.

Homens e mulheres com seus balangandãs, que acumularam riquezas, retraçaram a própria cidade, que mesmo estigmatizados nos legaram a maior fortuna; o orgulho de nos sentirmos seus descendentes quando descobrimos que somos negros.

Vilson Caetano é pós-doutor em antropologia e professor da Ufba

Mais sobre o mesmo tema:


+ sobre o tema

Em 13 anos, número de professores com doutorado em universidades federais cresce 189%

Há 13 anos, apenas 20.711 docentes efetivos da carreira...

Ex-morador de rua, jovem de PE faz vaquinha para cursar medicina no Canadá

Aos 17 anos, Denis José da Silva tem uma...

Sem recursos, Fies fica cada vez mais difícil para os estudantes

Em 2014, foram 700 mil contratos; em 2016, não...

para lembrar

USP lança curso de extensão online que ensina a escrever artigos científicos

Para melhorar a qualidade da elaboração de artigos científicos por...

Bolsa para estudar em Portugal, na Espanha e em outros 8 países da América tem inscrições abertas

Estão abertas as inscrições para o programa de Bolsas...

10 fotografias que retratam a História do Brasil de uma maneira que você não está habituado

Cabeças decapitadas do temido bando de cangaceiros de Lampião,...

A professora indígena que revolucionou as escolas rurais

Lucinda Mamani ganhou prêmio de excelência em educação por...
spot_imgspot_img

Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em Defesa do Investimento nas Escolas Públicas

As Coalizões, Redes, Entidades Sindicais, Instituições Acadêmicas, Fóruns, Movimentos Sociais, Organizações da Sociedade Civil e Associações signatárias deste documento consideram que a possível autorização...

Geledés participa de evento paralelo em fórum da Unesco

Geledés - Instituto da Mulher Negra participou de evento paralelo do 3º Fórum Global contra o Racismo e a Discriminação da Unesco, que começou nesta terça-feira,...

Lula cria fundo privado de R$ 20 bi para tentar manter alunos pobres no ensino médio

O governo Lula (PT) editou uma MP (medida provisória) que cria um fundo privado de financiamento de bolsas para incentivar estudantes pobres a permanecerem no ensino...
-+=