Pedagoga brasileira apresenta livro sobre realidades da cultura afro-brasileira

A leitura que se pode fazer da obra “História e cultura afro-brasileira”, de Regiane Augusto de Mattos, é que na vertente da escravatura e património imaterial o Brasil foi, definitivamente, marcado pela “ochilelembya” (alma, em umbundu), disse ontem ao Jornal de Angola o historiador Simão Souindoula.

Divulgação

O livro de Regiane Augusto de Mattos, com 217 páginas e um suporte claramente didáctico, acaba de ser reeditado em São Paulo, pela editora Contexto.

Na opinião de Simão Souindoula, o livro surge das imparáveis iniciativas registadas na sequência da promulgação, em 2003, da lei de ruptura, que tornou obrigatório o ensino da evolução histórica e das realidades culturais africanas e afro-brasileiras nas escolas brasileiras. “O manual é articulado numa sucessão cronológica, em quatro grandes capítulos que apresentam, respectivamente, ‘As Sociedades africanas’, ‘O tráfico de escravos’ e ‘Os africanos no Brasil’ e ‘A cultura afro-brasileira'”, disse o historiador.

No livro encontram-se à volta de 30 desenvolvimentos, sínteses, acompanhadas de inteligentes exercícios pedagógicos, sobre vários povos e formações políticas de África, como o actual território angolano, os Reinos do Congo, Loango, Andongo, Libolo, Luba e Lunda.

O historiador disse que a autora inicia a sua obra com a famosa tirada poética de Agostinho Neto: “Aspiração”. “Ela escolheu bem, voluntariamente, esta peça que contém bantuismos, bem dicionarizados no português do Brasil, como: congo, batuque, quissanje, marimba e sanzalas”, disse

Referiu que a pedagoga leva o leitor a fixar dezenas de expressões linguísticas, religiosas ou artísticas, como a umbanda, cuja ligação em kimbundu e umbundu é similar, e em kikongo kimbanda.

De acordo com o historiador, o livro “Historia e cultura afro-brasileira” prova, uma vez mais, a força de intersecção das manifestações linguísticas e antropológicas angolanas, no Brasil. “A obra confirma que uma substancial parte do famoso alento brasileiro partiu do Quadrilátero, e que as duas nações atlânticas estão vocacionadas para manter laços de estreita fraternidade”, disse o historiador angolano.

Conferência sobre São Tomé

O historiador Simão Souindoula profere hoje, às 18 horas, na sede da União dos Escritores Angolanos (UEA), uma conferência sobre o tema “Angolares iniciaram no século XVI insurreições autonomistas de São Tomé”, inserido na “Maka à quarta-feira”.

Esta é a primeira conferência realizada pelo projecto este ano e enquadra-se nos festejos do 4 de Fevereiro, Dia do Início da Luta Armada de Libertação Nacional, numa realização conjunta da União dos Escritores Angolanos e do Triangulo Turístico e Histórico-Cultural Kanawa Mussulo.

O também vice-presidente do Comité Científico Internacional do projecto da UNESCO “A Rota dos Escravos” disse, ao Jornal de Angola, que São Tomé e Príncipe é um arquipélago que foi descoberto inabitado, em 1471, e que foi sistematicamente povoado, até meados do século XX, com população do actual território angolano. “São Tomé registou, em 1574, uma das primeiras sublevações, no mundo atlântico, abertamente independentistas, de escravos negros”, frisou.

Os amotinados “Ngola”, liderados pelo Rei Amador, quase se apoderam da cidade portuária, esclavagista, tendo a guerrilha e a resistência residuais dos acantonados de Praia Grande durado, sensivelmente, três séculos.

“Em homenagem ao valente Soberano de Maculu, a sua efígie é gravada na moeda nacional são-tomense e o 4 de Janeiro é Feriado Nacional”.


Apresentação

A história das sociedades africanas foi, durante muito tempo, deixada de lado, em grande medida devido às idéias preconcebidas sobre o continente africano produzidas, sobretudo pelos europeus, nos séculos XVIII e XIX. Como as sociedades africanas não apresentavam as mesmas instituições políticas, não possuíam padrões de comportamento e visões de mundo semelhantes aos dos europeus, a conclusão só  odia ser uma: a de uma sociedade não civilizada e sem História.

No entanto, antes da disseminação dessas visões preconceituosas sobre a África, esse continente foi objeto de muitas obras de árabes, europeus e dos próprios africanos, que retrataram suas principais sociedades, estruturas políticas e econômicas, bem como seus aspectos culturais, visões de mundo, expressões artísticas e formas de organização familiar. Essas obras, acompanhadas da cultura material e de depoimentos, nos ajudam a entender esse continente tão próximo geográfica e culturalmente do Brasil.

Os africanos, depois da longa e penosa travessia do Atlântico, foram para cá trazidos e levados a trabalhar como escravos em várias atividades econômicas no campo e na cidade e sofreram a violência e a opressão inerentes ao sistema escravista. No entanto, apesar das agruras e dos obstáculos impostos pela escravidão no Brasil, os africanos e seus descendentes, convivendo com brancos d’além-mar e nacionais, pardos, indígenas, crioulos e africanos de diferentes regiões, encontraram meios para se organizar e manifestar as suas culturas e, dessa forma, influenciaram profundamente a sociedade brasileira, como se poderá perceber ao longo deste livro.

Tendo em vista a complexidade e a diversidade das sociedades que constituíam o continente africano, o primeiro capítulo oferece um panorama de algumas das principais sociedades da África Subsaariana (território ao sul do deserto do Saara), com destaque para as regiões que, mais tarde, estabeleceram relações comerciais com os europeus e tornaram-se fornecedoras de escravos para o Brasil. São abordadas algumas estruturas políticas e econômicas, bem como determinados aspectos culturais, reservando-se espaço para as questões da religiosidade, a importância da oralidade, as formas de  organização familiar, as relações de trabalho e a escravidão em cada uma dessas áreas.

No segundo capítulo são discutidas as questões referentes ao comércio europeu de escravos africanos, enfatizando-se as transformações fundamentais que engendraram a escravidão praticada  nteriormente na África. A dinâmica desse comércio, os agentes envolvidos no tráfico, as principais rotas e os produtos utilizados na troca por escravos e os mais importantes portos de exportação são pontos privilegiados da análise.

Também não se pode deixar de lado a variável quantitativa do tráfico de escravos africanos. Dessa maneira, o número de escravos embarcados nas principais regiões da África Subsaariana (Ocidental, Centro-Ocidental e Oriental) é abordado em relação às respectivas áreas receptoras do Brasil.

O primeiro aspecto que surge quando se trata de estudos a respeito dos africanos no Brasil é o papel destes como mão-de-obra escrava. É evidente que esse não foi o único papel desempenhado pelos africanos na sociedade brasileira, mas foi o primeiro, aquele que impulsionou sua entrada no país. É por isso que a variedade das ocupações exercidas pelos africanos nas propriedades rurais e nas cidades não pode ser deixada de lado.

Ainda nesse capítulo são tratados os diferentes aspectos da resistência escrava. O estabelecimento de grupos de escravos fugidos ocorreu em toda a América escravista, inclusive em várias regiões do Brasil, desde o século XVI. Além de Palmares, outras experiências foram significativas, assustando e gerando ações repressivas das autoridades, no Maranhão, no Mato Grosso, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo.

Dessa maneira, nesse capítulo faz-se um panorama da experiência histórica dos quilombos no Brasil, destacando-se as principais questões que envolviam esse tipo de resistência, como a construção de alianças com diferentes camadas sociais, a criação de um espaço para a comercialização de gêneros produzidos nesses locais, entre outras.

As revoltas constituíram um outro meio de resistência ao sistema escravista e são privilegiadas nesse capítulo. Além da Revolta dos Malês, na Bahia, outras denúncias de levantes aconteceram, por exemplo, em algumas cidades do Rio de Janeiro e do interior de São Paulo. No entanto, os escravos não apenas reagiram diretamente contra o sistema escravista, articulando revoltas e formando quilombos, mas lutaram cotidianamente para conseguir melhores condições de vida e trabalho, bem como a liberdade.

Assim, são tratadas a compra da alforria pelos próprios escravos, a autonomia para o cultivo de suas roças e para a comercialização de seus produtos, a reivindicação de folgas no trabalho etc. E, por fim, é ressaltada a atuação do movimento abolicionista nas principais cidades brasileiras, contribuindo na formação de quilombos e na defesa da liberdade dos escravos.

No entanto, os africanos não contribuíram apenas no âmbito do trabalho, mas marcaram a sociedade brasileira em outros aspectos: na forma como se organizavam em “nações”, na constituição de famílias (muitas vezes simbólicas), nas manifestações da religiosidade (catolicismo, islamismo e candomblé) e da cultura (língua, lundu, batuque e capoeira).

Portanto, o terceiro capítulo aborda, num primeiro momento, as diferentes formas de organização social e determinados aspectos culturais dos africanos que vieram para o Brasil como escravos, relacionando-os, quando  possível, às influências dos costumes e crenças que trouxeram da África.

Num segundo momento, o capítulo trata do período pós-abolição da escravidão, quando esses africanos e seus descendentes conseguiram a liberdade e lutaram para integrar o mercado de trabalho livre e combatera exclusão racial, participando do movimento operário, criando organizações políticas e culturais negras, como companhias de teatro, clubes, associações e jornais alternativos, construindo em torno dessas organizações uma forte identidade negra. Por outro lado, ao mesmo tempo em que os negros uniam-se contra a discriminação e a segregação racial, galgando espaços na sociedade, preservavam manifestações como as congadas, os maracatus, o tambor-de-crioula e criavam novas expressões culturais, como os afoxés e blocos afros, os gêneros musicais maxixe e samba, e o Movimento Hip-Hop, formando, assim, o que chamamos hoje de cultura afro-brasileira.

 

 

Fonte: Jornal de Angola

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