Segundo educadora, personagens são colocadas como vítimas e subalternas.
Tese será defendida no mestrado de Fernanda Gomes Françoso.
por Heloise Hamada no G1
O estudo da história e cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio, seja em instituições públicas ou privadas, é instituído por lei. Porém, nem todos concordam com a forma como as negras são retratadas nas salas de aula. Uma delas é a professora de história Fernanda Gomes Françoso, de Presidente Prudente, que fez uma análise dos materiais didáticos distribuídos pelos governos estadual e federal, em seu trabalho de mestrado. No Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, nesta terça-feira (21), ela ressalta a importância de se adequar a imagem dessas mulheres na libertação dos escravos e também para o debate atual sobre o racismo e o preconceito.
mulheres negras durante a escravidão
(Foto: Reprodução/G1)
Fernanda tem 31 anos, é formada em história e leciona a matéria na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo, em Presidente Prudente. Em 2014, ela iniciou seu mestrado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e decidiu fazer esta análise do próprio material que utilizava em aula. “Começou com uma inquietação minha, pois as mulheres negras aparecem muito pouco na história e isso é algo que eu acompanhava há anos”, diz ao G1.
Ao analisar o material didático, o objetivo da pesquisa foi investigar quais são as representações raciais e de gênero que podem ser associadas às imagens das mulheres negras no período da escravidão brasileira.
Para o estudo, Fernanda escolheu o conteúdo distribuído pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, que são os Cadernos do Professor e do Aluno, que possuem vigência de três anos. Os analisados foram os do ano de 2014, voltados para estudantes do oitavo ano.
Também usado pela rede pública, ela investigou os livros didáticos de história oferecidos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do governo federal. Tais publicações são utilizadas como complemento aos Cadernos e as coleções selecionadas pela professora foram dois volumes do ciclo trienal de 2014, para os alunos do sétimo e oitavo ano, com idade entre 12 e 14 anos.
Nos dois materiais, a professora salienta que as mulheres negras aparecem mais no contexto da escravidão. “Nos Cadernos, as negras são retratadas nas imagens como serviçais, subalternas ao seu senhor, ou em posição de vítima, sem nenhum texto explicativo, legenda, ou atividades que falassem somente delas”, destaca Fernanda.
Já nos livros, a professora relatou que as negras aparecem em maior quantidade, algumas em ato de resistência, não somente em posição de sofrimento e servidão. Contudo, nem todas as imagens estavam ligadas ao texto explicativo, tratando de outro tema, não à figura feminina.
Apesar de ter uma melhor retratação nos livros didáticos, Fernanda frisa que na seção dos exercícios também não são tematizados assuntos atuais, como os debates sobre as reivindicações do movimento feminista negro, ou o papel destas mulheres no desenvolvimento da sociedade, o racismo, machismo, preconceito e o patriarcado. “Mencionam poucas vezes a discussão sobre o preconceito e a discriminação racial”, enfatiza a pesquisadora.
Conclusões
A professora salienta que há um avanço nos livros didáticos, se comparadas as publicações da década de 80 com as atuais. “Antigamente, as mulheres negras eram colocas de uma forma muito estereotipada, como a negra exótica, sempre em posição de subalternidade. Ainda há uma representação como serviçais, mas também há imagens que as mostram em posição de resistência, em festas, rodas de capoeira, demonstrações de que elas participavam de outras atividades”, afirma ao G1.
Entretanto, em geral, nos materiais analisados pela docente não tem um aprofundamento da temática da resistência das mulheres negras no período da escravidão. “Em ambos os materiais não fala como elas agiam. Fora a parte que não tem discussão sobre o preconceito, não tem um debate sobre a atual situação das mulheres, do racismo”, pontua.
Mesmo coerentes, os livros apresentam lacunas e ela destaca que os professores precisa ter um olhar crítico e sensibilidade para não reproduzir esteriótipos, como na retratação apenas da mulher negra como serviçal. “Sua história de luta e resistência fica pouco aprofundada ou até mesmo invisibilizada. O que esperamos com a pequisa é que a questão do racismo, do patriarcado, o machismo, o preconceito sejam debatidos na escola, na sociedade como um todo”, complementa Fernanda.
Segundo a orientadora Maria de Fátima Salum Moreira, a pesquisa atenta que os produtores dos livros não proporcionam as condições necessárias para que as imagens possam ser analisadas enquanto documento histórico, o qual permite ir além daquilo que apenas faz corroborar o que sempre repetiu determinada historiografia.
“As imagens são potencialmente capazes de fazer pensar sobre a presença e importância dessas mulheres na fuga de escravos, na constituição de núcleos familiares, na cultura religiosa, etc. Diversos conteúdos imagéticos não são devidamente indagados ou problematizados, tais como: a circulação dessas mulheres no mundo do trabalho urbano, vendendo quitutes, namorando e passeando, isto é, construindo, sob diferentes formas, suas vidas e autonomia enquanto sujeitos históricos”, fala a orientadora.
Fernanda Gomes Françoso defenderá sua dissertação em de abril e foi intitulada: Os lugares de mulheres negras em materiais didáticos de história da Secretária da Educação do Estado de São Paulo.
Lei
A Lei nº 11.645, de março de 2008, alterou a Lei nº 9.394, de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
De acordo com a lei, “nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”. O inciso primeiro determina que o conteúdo programático a que se refere o artigo “incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil”.
Já o inciso segundo informa que os “conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”.
Outro lado
De acordo com o Ministério da Educação (MEC) explicou ao G1, a escolha dos livros didáticos que serão utilizados nas escolas é feita pelos Estados e pelos municípios, “autônomos conforme a Constituição Federal, com participação de professores e diretores”.
O funcionamento do programa está descrito no site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. “A avaliação dos livros didáticos inscritos nos processos instituídos pelo MEC é pautada pelos critérios comuns e específicos apresentados em cada um dos editais. Conforme disposto no Decreto 7084/2010, a avaliação é feita por universidades públicas, mas, desde 2015, elas são selecionadas por meio de chamamento público”, afirmou.
O MEC ainda pontuou que com o PNLD 2017, já na gestão atual do Ministério, a Secretaria de Educação Básica introduziu no edital “princípios que compreendem processos sociais, científicos, culturais e ambientais, de modo a representar o conjunto da sociedade”. “Os referidos princípios norteiam a aplicação das diversas legislações dispostas no edital, tornando mais eficaz a sua avaliação. Isso se aplica ao tratamento da imagem da mulher e da história e valores culturais afro-brasileiros”, disse.
Por fim, foi informado que o MEC está sim aberto a críticas e coloca os canais institucionais, como o e-mail institucional da coordenação-geral de materiais didáticos, o fale conosco do Ministério, e o Serviço de Informações ao Cidadão, à disposição da população.
O G1 também solicitou um posicionamento para a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e foi informado que, conforme esclarecimento da Diretoria Regional de Ensino de Presidente Prudente, nas escolas estaduais, independente do material didático, a temática de mulheres negras, empoderamento feminino e feminismo estão sempre presentes em discussões e trabalhos pedagógicos. Já que rotineiramente assuntos da atualidade são levados para a sala de aula e relacionados aos conteúdos ensinados.
Ainda foi ressaltado pela Secretaria da Educação ao G1 que, além das aulas de história, nas disciplinas de filosofia e sociologia também acontecem debates e atividades lúdicas sobre este tema. A exemplo da Escola Estadual Joel Antônio de Lima Genésio que realizou o projeto ‘Respeite meus cachos’ para tratar da importância do respeito às diferenças e também fez uma oficina de confecção de bonecas negras, valorizando a história e a beleza das mulheres negras.
A pasta também alegou que “é importante ponderar que o currículo prevê que as disciplinas de artes, português e história também ensinem aos alunos sobre a história e cultura africana” e que o conteúdo dos cadernos do aluno e do professor segue a Base Nacional Comum Curricular.