Primeiro negro a presidir a Associação de Imprensa do RS fala sobre racismo no setor

Para José Nunes, o racismo estrutural reduz o espaço dos afrodescendentes no mercado jornalístico

Oitenta e seis anos após sua fundação, a Associação Riograndense de Imprensa (ARI) tem um presidente negro. José Nunes, 52 anos, natural de Vacaria (RS), filho de um foguista dos tempos das serrarias nos Campos de Cima da Serra, dirige a entidade fundada por Érico Veríssimo em 1935.

Nunes presidiu também, por dois mandatos, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais/RS (Sindjors). Aliás, o Sindjors também hoje é comandado por uma presidenta negra, Vera Daisy Barcellos – outra situação inédita sobretudo em um estado com forte imigração europeia, onde os afrodescendentes representam apenas 18% da população.

Sobre esse e outros assuntos, o presidente da ARI conversou com a reportagem. Confira a entrevista:

BdFRS – Na atualidade, as duas maiores entidades representativas do jornalismo gaúcho têm presidentes afrodescendentes. A que se deve esse momento histórico?

José Nunes – É relevante dar visibilidade e divulgação ao fato do sindicato e a ARI terem lideranças negras e, em relação ao sindicato, a presença de uma mulher negra, que acaba sofrendo preconceito duplo. Para as nossas entidades representativas, o mais importante é que essas lideranças negras se assumem como tal. Por um lado, reconheço que é notícia, mas também sabemos que a notícia normalmente é uma situação de exceção às regras. Portanto, é preciso questionar o quanto esse fato é reflexo de um avanço na busca pela igualdade racial e, portanto, por espaço, ou se trata de um fato isolado mas que, de toda maneira, merece ser reverenciado para que possamos observar este fenômeno com mais profundidade.

É fato – e não notícia falsa – que convivemos com a cruel e impiedosa realidade de um racismo estrutural, ainda negado por muitos que têm a responsabilidade de promover e orientar políticas públicas voltadas para reduzir as desigualdades raciais e de gênero.

É imensa a satisfação de estar presidente da ARI nos seus 86 anos e, na condição de ser o primeiro negro a administrar essa entidade, tenho um orgulho muito grande. Mas isso não é uma benesse. Sempre estive atento às questões ligadas à categoria profissional não apenas na minha condição de ser negro. Ao longo dos anos, fui me construindo como líder. Mas não estou sozinho, pois tenho uma equipe que trabalha com um propósito, o da defesa da liberdade de imprensa e de expressão.

“Os negros representam apenas 6% dos jornalistas nas emissoras de televisão”

BdFRS – Hoje temos diversos negros atuando na imprensa. Poderias nos fazer um apanhado nas diversas categorias?

José Nunes – Quando identificamos a presença de racismo estrutural, estamos falando de um sistema de hierarquização de grupos que coloca a população branca no topo do poder. A nossa categoria profissional, assim como qualquer outro segmento social, acaba reproduzindo as relações e as estatísticas presentes em toda a sociedade. Para ajudar nesta comparação, é importante ressaltar que os negros são mais da metade da população brasileira, percentual que não passa de 20% no RS, onde os negros representam, por exemplo, apenas 6 % dos profissionais de jornalismo nas principais emissoras de televisão.

Com base nas desigualdades, cultivadas em 400 anos de escravidão, podemos destacar, ainda, que a dificuldade de acesso dos negros às faculdades e universidades leva a uma presença reduzida de jovens nos cursos superiores de comunicação. O que certamente representa uma das causas de haver poucas pessoas negras também em postos de destaque no mercado profissional do jornalismo, sobretudo o televisivo, onde a imagem dos repórteres e apresentadores está mais exposta, sofrendo, portanto, maiores restrições.

“Nosso estado tem uma ferida aberta no passado escravocrata com graves sequelas até hoje”

BdFRS – Na história da imprensa gaúcha poderias definir o papel dos afrodescendentes?

José Nunes – Os indicadores oficiais apontam que cada vez mais gente se autodeclara preta ou parda na população, o que significa um maior conforto em se reconhecer como negro. No entanto, em todos os anos de profissão, trabalhando em diferentes redações, o número de pessoas negras nunca foi significativo, o que sempre me chamou atenção. Este continua sendo um grande desafio, apesar de todo esforço histórico de grandes profissionais negros que militaram na comunicação e, em especial, defendendo a causa da igualdade racial.

Destaco aqui a imprensa negra que sempre foi uma importante ferramenta para dar visibilidade às ações da nossa população no Rio Grande do Sul. Além disso, essa imprensa conduzida por grandes profissionais, sempre se preocupou com a importância da educação para a ascensão social do negro. Educação: esta é a chave para se alcançar a redenção das minorias oprimidas e o fim do preconceito que nasce do racismo estrutural ou de conflitos envolvendo a discriminação em relação às mulheres e à população LGBTQI+.

O Brasil e, em especial, o nosso estado, tem uma ferida aberta no passado escravocrata e que produz graves sequelas até hoje. Historicamente, a maioria branca acaba colocando a contribuição negra em segundo plano, seja no jornalismo ou nas mais diferentes áreas de atividade humana. Mas, de maneira nenhuma, é fala vitimista, até porque o papel do jornalista está a serviço da sociedade e dessa forma pretos, pardos, amarelos e brancos tem que ter esse norte sempre.

“Fui o segundo presidente autodeclarado preto a assumir o sindicato”

BdFRS – João Souza foi um dos primeiros dirigentes classistas. Podes falar um pouco sobre este papel?

José Nunes – Quando cheguei na direção do Sindjors, como na maioria das redações, encontrei poucas pessoas pretas militando na entidade, mesmo que já tivéssemos criado o Núcleo de Jornalistas Afrodescendentes, um dos pioneiros do país. Ali encontrei o João Souza, um verdadeiro mestre no Jornalismo e, para meu orgulho, acabei sendo o segundo presidente autodeclarado preto a assumir o posto de presidente eleito do sindicato. Foram anos de muito aprendizado, que culminou também nessa sequência na militância pelo Jornalismo e os jornalistas. Como falei anteriormente, as pessoas devem ser valorizadas pelo trabalho que exercem, não pela sua cor de pele, crença ou qualquer outra situação que as coloque em grupos opostos à ampla maioria.

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