Ser brasileira nem sempre é tudo de bom. Nem é só praia, rio, gozo, música, criatividade. É duro quando outros povos, não sem razão, associam o Brasil à leniência, corrupção, desorganização. Ressaltam nossas desigualdades imorais.
Sei que tais defeitos têm muito mais a autoria dos governantes e poderosos do que propriamente da massa que rala para produzir festas e riquezas. É assim desde que o senhor Cabral gritou: “Terra à vista.”
Mas há uma particularidade que me faz adorar ter nascido aqui. A vantagem de ser mestiça, independentemente da cor da minha pele e das minhas ascendências. Sinto que ao sabor da situação, escolho a minha cor.
Melhor ainda, não sou eu quem escolhe. É o DNA cultural quem o faz. Assim quando quero dançar, brincar, me transportar na alegria coletiva, opto por ser negra. Deixo que os tambores da África baixem em mim.
Evoco a resistência dos quilombos toda vez que a batalha me chama. Sou uma mulher negra na hora de conquistar com garra e inteligência espaços historicamente negados. Aí me torno peituda, abusada, insistente.
Já quando quero transitar sem constrangimentos nos shoppings, passar sem alarme pelas portas dos bancos, entrar nos prédios sem questionários aplicados por porteiros, viro uma mulher branca. E flano altaneira com toda naturalidade.
É claro também, numa justa homenagem às verdadeiras donas da casa, me transformo em mulher indígena quando me encontro com a natureza e com os sentimentos pré-capital. Nos momentos em que ouço o que diz o vento e descubro para aonde vão as águas.
Essa mistura, a impureza racial, o almanaque de tradições e narrativas, a recusa em aceitar as desigualdades, são o que fazem eu gostar de ser brasileira. Gostar de ser uma branca com alma de preta.
Curto entrar no trem do metrô e ver o quanto encardidos somos. Um olho azul na pele morena. Um cabelo pixaim na pele branca. Olhos de índia na bisneta de uma polonesa. De repente, aí está a nossa força. O nosso passaporte carimbando o futuro.
Imagem: Régine Ferrandis.
Fonte: Yahoo