Qual é o topo para a população negra?

Artigo produzido por Redação de Geledés

Será que o anti racismo brasileiro não passa de frases de efeito que estão repaginando o mito da ‘democracia’ racial

 “Eu sou porque nós somos”, ensina a expressão Ubuntu, parte da filosofia do povo Zulu, que exemplifica a importância da união entre as pessoas negras, para vencer o racismo estrutural e a opressão racial presente em nossa sociedade.

Os zulus são originários de uma vasta região que atualmente engloba vários países, entre eles a África do Sul, onde foi travada uma árdua luta contra o colonialismo europeu e o Apartheid. 

A filosofia Ubuntu foi fundamental para este processo de resistência e vitória contra o racismo, pois provou que os pretos só podem estar no topo, se forem levados pela união que é a nossa maior força até contra a mais cruel das opressões. 

Ter um olhar que enxerga o coletivo ao invés de apenas o individual, transmite um pouco de Ubuntu para a nossa realidade. Isso nos leva a uma reflexão sobre a expressão “pretos no topo”. Ela transmite uma “falsa sensação de representatividade”, evidenciada pelas exceções de pessoas negras que, isoladamente, ocupam e assumem lugares de destaque. 

É como se fosse uma disputa, onde não passamos de um token, que é um termo utilizado pela primeira vez por Martin Luther King para provar que as pessoas são transformadas em símbolos para reduzir a real intenção da representatividade e acesso aos seus direitos, dando a falsa sensação de inclusão. 

“Pretos no Topo” virou uma cortina de fumaça e apagamento para a maioria de nós. Os casos de exceção e não regra, apontam como a negritude é colocada em pauta para parecer uma espécie de cotas ilusórias, ou afastar a sociedade do debate sobre o racismo e os seus desdobramentos, exatamente como acontece no mito da democracia racial – em que se usa a miscigenação para afirmar que não existem conflitos raciais no Brasil.

Mostra a sua cara

 A cara da população brasileira é negra, basta olhar para a quantidade de negros espalhados por todo território nacional, contando com aproximadamente 56,1% cidadãos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE). Apesar disso, a falta de representatividade em lugares de destaque na sociedade ainda continua baixo ou nulo, como na política, nos negócios, na intelectualidade e no mercado de trabalho. 

 Toda semana, inúmeros brasileiros lidam com essa realidade, desde a infância até a vida adulta. Para Verônica Dudiman, 30 anos, não é diferente. Mesmo com uma vivência num contexto fora do comum da maioria, ela viu de perto como é a vida da sua comunidade e os desafios que enfrentam. 

Verônica é cofundadora da Indique uma Preta, junto com Danielle Mattos e Amanda Abreu. As três lidam com os efeitos colaterais dessa falta de representatividade racial nas áreas de prestígio do mercado de trabalho.

 “Esse topo me incomoda um pouco, porque a gente está falando dessa chegada e sempre são poucas pessoas que chegam. Quando a gente olha é a imagem de uma pirâmide, por exemplo, então pensar quem serão as pessoas que vão ser excluídas e essa é uma ideia que não funciona para a sociedade negra e do que a gente realiza hoje da gente ocupar esses espaços de forma igualitária”, diz Verônica.

Em média, 62% dos trabalhadores informais são negros, principalmente mulheres negras, que têm cada vez menos acesso aos cargos com estabilidade e bons salários.

Verônica Dudiman

Seria a educação?

Vencer na vida com base nos estudos ainda não é o direito de todes, mesmo com  as políticas de cotas. Daniela Lira, de 27 anos, é a primeira de sua família a entrar no mestrado. 

Em 2020, ela ingressou na pós-graduação por meio de bolsas e com a ajuda da mãe para entrar e permanecer na universidade. 

 “A gente sabe que fazer mestrado no Brasil não é uma coisa simples. Nós que estamos nesse pique de seguir a carreira acadêmica, Deu certo entre trancos e barrancos, ainda bem” conta Daniela. 

Daniela em apresentação acadêmica na Unesp/ Arquivo pessoal

Histórias como a da Daniela, que trazem o senso de coletividade, não são novidade na nossa luta. 

A Frente Negra Brasileira (FNB) surgiu no começo do século XX, sendo um precursor da luta brasileira contra o racismo na sociedade por relações políticas e econômicas. A associação tinha o objetivo de firmar os direitos pela união da população negra, se baseando no pilar fundamental da educação como uma ferramenta de superação da marginalização na sociedade, sendo um início para as políticas afirmativas que viriam a ser constituintes . 

“Para essas pessoas, a situação econômica era um obstáculo, mas, a partir de sua inserção na FNB, elas conseguem fazer a associação dessa situação econômica com o racismo estrutural e conseguem sair do plano individual para o coletivo”, diz Márcio Barbosa, autor do livro “Frente Negra Brasileira — Depoimentos” (Quilombhoje, 1998).

Acervo Biblioteca Nacional

As ações da FNB quebraram barreiras e ajudaram a comunidade negra a lutar pelo coletivo e não pelo individual.  Um desdobramento dessas conquistas foi a aprovação das  das leis 10.639 e 11.645 que tornam obrigatórias o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas dos nossos ancestrais. 

Pacto da ‘não-mudança’

O sonho do topo, principalmente para a população negra é concentrado muitas vezes no esforço individual, o que acaba desmobilizando e fragmentando o movimento negro. Quando poucos chegam nesse suposto lugar, é preciso refletir sobre o caminho para chegar ao “topo” e os pactos feitos com o sistema que alimenta e preserva o racismo estrutural. O “topo alcançado meritocraticamente”  segue sendo um ambiente para poucos e não para todos. 

Roupas e glamour

As grandes logo marcas fazem apropriações de códigos, símbolos, dialetos para seduzir consumidores negros. A maioria dessas empresas são figurinhas carimbadas nos bailes, eventos e esportes, funcionando até mesmo como um jeito de garantir status social. Uma amostra disso, no mundo esportivo é que para atletas negros o ápice de suas carreiras é fechar um contrato com essas companhias. 

Allyson Felix, de 38 anos, simboliza uma dessas circunstâncias de esportistas de alta performance, sendo uma ex – atleta olímpica com 6 medalhas de ouro, que teve problemas com a Nike. O seu acordo foi rescindido no ano de 2018, para 70% dos seus ganhos reduzidos após escolher ser mãe. 

A partir disso, a decisão de entrar numa disputa judicial foi inevitável diante dessa atitude da marca, Allyson venceu a causa e ainda fez história deixando uma herança para as próximas atletas de que os seus rendimentos não podem ser alterados devido à decisão da maternidade.

“Nossas vozes são poderosas!” –  Allyson Felix, 2018   

Acervo pessoal Instagram 

Consumir signos que estampam a moda, não significa, necessariamente, fazer parte do movimento anti racismo, ao contrário, é uma forma de apoiar o processo histórico de apropriação, apagamento e opressão da comunidade negra. 

Tudo quanto era negro e passou a ser do branco se popularizou depois desse apagamento em massa, como presenciamos em eventos que a arte imita a vida. No filme da Marvel Pantera Negra, temos a cena do museu europeu em que o antagonista Killmonger reivindica objetos de seus ancestrais enquanto denuncia a posse do patrimônio roubado no passado. 

Em paralelo, recentemente viralizou o acontecimento do Rei Nabil Njoya,  do povo Bamum localizado a oeste de Camarões, que se sentou em trono levado há 115 anos durante a invasão da Alemanha ao reino, tudo isso dentro do Museu Etnológico de Berlim. Um ato como esse gerou uma sucessão de alguns pedidos de desculpas dos países que são frutos da colonização, devolvendo parte dos artefatos para os devidos lugares de origem. 

Embaixada de Camarões 

Fica nítido que a branquitude compactua com esse sistema de promover e replicar a exploração, nesta estrutura onde a vaidade de uma suposta identificação é mais aceita do que uma ótica realista que inclua não apenas o topo. Refletindo sobre quanto tempo e quantas gerações conseguem se manter nessa posição? 

A trilha da Violência 

A discriminação racial é tão forte no território brasileiro que muitas vezes a reação violenta se torna uma opção, para alguns. Essas histórias são comuns nos telejornais dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro.

A violência orquestrada contra os corpos negros sempre ganhou holofote na mídia. Recentemente a Bahia se tornou líder no ranking de mortes violentas no país, vale ressaltar que esse é o estado com a maior número de cidadãos negros, fatos como esses comprovam que precisamos estar em alerta e tomar alguma atitude em relação a essa descriminação que invés de acabar só aumenta. 

 De acordo com o Anuário da Violência de 2023, 76,9% vítimas de assassinato no país em 2022 eram negras.

Segundo o relatório, é “impossível negar o viés racial da violência no Brasil, a face mais evidente do racismo em nosso país.”

Este sinal de alerta não vem de hoje.

“Existe uma matança organizada de negros em SP e no RJ, que é um verdadeiro escândalo, como se mata negros nesse país e ninguém diz nada, parece que é uma questão e uma coisa natural a matança de negros”, afirmou Abdias do Nascimento.

Ubuntu Abdias

Abdias do Nascimento deu aulas sobre multimídia, antes mesmo do multiverso estar na moda, sempre com foco na coletividade e na união do povo negro. Abdias foi professor universitário, senador, artista plástico, ator, criador de teatro, museu e até de jornais, entre outras áreas, sendo uma referência em cada uma delas. 

O seu pioneirismo foi um instrumento de letramento racial para muitas pessoas, um exemplo deste alcance é o livro O genocídio do povo negro. Que foi uma análise do autor, que considera essa prática uma tática social que promove a rejeição e invalidação do RG negro na sociedade brasileira, mapeando essa agressão histórica. 

Conceitos de democracia racial e visões de negritude por Abdias do Nascimento 

São coisas assim que nos levam a refletir e desmistificar a respeito desse tal topo, as perspectivas variam dependendo de onde você esteja no alto, no meio ou na base. Como diria Rodrigo Portela, 35 anos, idealizador e diretor da Terra Preta Produções, “Para mim, eu estou no topo faz tempo, tenho mais de 30 anos. Estou vivo como um homem negro em São Paulo”.

Por acreditar no potencial do audiovisual como uma ferramenta, usa esse recurso para construir e ocupar espaços que antes nos foram negados. 

Pensando dessa forma, dá para imaginar o por que alguns pretos estão no topo, mas ainda não todos. Reconhecemos a diferença que faz, ter essas figuras ocupando esses ambientes nos filmes, internet, música e muito mais. Onde a conquista de um não pode deixar de lado a construção de um caminho para outros semelhantes aos que chegaram, graças a todo um apoio coletivo feito muitas vezes nos bastidores das favelas e comunidades. 

Alguns artistas sabem muito bem disso, o cantor Nego Bala, 25 anos, é também um ativista que incentiva e participa na luta pelos avanços da comunidade negra. Um dos seus trabalhos mais premiados é a música Sonho, que não se limita a apenas este formato sendo uma espécie de filme misturado com videoclipe onde as pautas da melodia são eternizadas pela participação da saudosa Elza Soares.

Contrapondo a possibilidade de ter esperança sem cair nas armadilhas da inocência de um futuro melhor, assim como foram com os nossos ancestrais antes de nós. Sempre na busca pela conquista do que merecemos, mesmo se for na Boca do Lixo como na vida do cantor. 

 É por conta disso que o Mc fala “Eu não quero estar no topo, eu quero inverter a pirâmide”, se estiver a fim de fazer parte desse corre reflita sobre tudo isso e não se esqueça que gênero e raça não descolam, o anti racismo só é efetivo valorizando a ancestralidade de uma luta coletiva.

Para escutar um papo de visão sobre esse assunto, escute:

Então depois de tudo isso, você acredita que os pretos estão no topo?

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