Que nossas palavras sejam máquina que faz fazer!

*Comunicação apresentada no II Simpósio Feminista da Universidade Federal do Tocantins (UFT), em março 2021.¹

Antropóloga, dedicada às pesquisas sobre modos de saber e fazer indígenas e, atualmente, indigenista especializada, pensei em como abordaria e poderia colaborar com as discussões do tema proposto para essa mesa: “Desafios da epistemologia, Literatura e Feminismo em contextos de potencialização da truculência”. Uma mesa para falar sobre horizonte, esperança, utopia […] linguagem. Confesso que ainda tenho dificuldades com a linguagem, estou em dívida com a literatura (ainda não li Torto Arado²), mas de truculência e feminismo talvez possa falar um pouco aqui. As mulheres que me antecederam já me falavam muito sobre isso, ainda que não dessem nomes aos bois.

Mas antes de tentar falar sobre linguagem, aquela falada ou escrita, falo do silêncio, daquilo que silenciei e daquilo que foi silenciado, do medo, do cansaço em dizer, e da ausência de ouvidos que se dispõe a ouvir. Faço isso recorrendo a algumas memórias que fizeram e fazem parte da minha vida e que podem de algum modo ressoar naqueles e naquelas que me ouvem aqui. Talvez também encontre pessoas que, como eu, escrevem na tentativa de colocar pra fora as palavras que a boca, por vezes, aprisiona.

Na infância, silenciei diante dos apelidos na escola. “Beiçuda!”. “Neguinha!”. “Coisas de criança!”, diziam as professoras, junto das quais minha mãe (por medo) fazia coro. Se a gente encrencasse podia ser pior. Na adolescência silenciosa, fazendo o tipo “filha que não dá problema nenhum”, me calei quando sugeriram que melhor que as ondas nos cabelos eram os fios simétricos da chapinha, ou quando o elogio de crush era fetiche racista. Faltavam (ainda faltam) referências na TV, nos temas de festa infantil, na moda, no mercado de trabalho. Eu sobrevivia lendo revistas adolescentes, famosas na época, que traziam péssimos conselhos sobre como ser “a garota ideal”, como me vestir, me portar e o mais importante, não tomar atitude! Nesse época também ouvia muito “We don´t need another hero”, meu pai tentava me apresentar “as potências para além das boy bands”. “Tina Turner arrasa!”. Isso para não falar da icônica Ivone Lara, que na época achava que era coisa de velho. Não sei se eram propositais as tentativas do meu pai de apresentar a mim mulheres negras que eram seus ícones. Só mais tarde essa estratégia passou a me fazer sentido.

Ainda que me esforçasse para tal nem sempre conseguia manter a boca fechada, ora ou outra meus silêncios eram rompidos com explosões monumentais de raiva, para silenciar novamente. “Você precisa pensar para falar!”. Você não pode falar o que quer!”. “Assim vai ficar sem amigos!”. Imagina que triste o destino de uma mulher que “perde as estribeiras”! Silenciei. Silenciei diante da maior parte dos impropérios ouvidos de professores e colegas ao longo de meus anos de formação. Já silenciei em lojas, bancos, restaurantes, diante de homens no trabalho. Ah […] e quantos deles já me silenciaram, enquanto dentro de mim eu fervia, e nem choro podia ter som. Chorar é sinal de desequilíbrio e falar alto, de descontrole. “Tá de TPM?”.

Não consigo nem contar quantas vezes se apropriaram das minhas ideias usando outras palavras, quantas vezes foram aplaudidos pela resolução de problemas que eu, junto de outras mulheres, resolvi. Dentre as memórias que me lembram do “meu lugar de mulher” não posso deixar de mencionar as primeiras aulas de antropologia em que o professor citava “a primeira mulher de Lévi-Strauss” (Dina Dreyfus), “a esposa de David Maybury Lewis” (Elsebet Helga “Pia” Maybury Lewis), ou a enfermeira sem nome que acompanhava algum sertanista. “Mulher também faz campo?”. Faz, e são assustadores os relatos de assédios sofridos por mulheres em campo, geralmente protagonizados por seus colegas de trabalho. Os mesmos que falam sobre a necessidade de nos “dar voz” (que já temos), mas não nos dão ouvidos.³

Mantinha a garganta fechada e o estomago forte. Aprendi lendo um texto de Letícia Miranda ⁴ que “o estômago tem que ser forte para suportar o soco duro e seco” das violências cotidianas. Também aprendi, dessa vez lendo Audre Lorde⁵, que os silêncio guardado “um dia diz: basta! e te dá um soco dentro da boca”. Os meus tem mandado meus dentes para longe. É difícil expressar as coisas que doem, sobretudo quando as pessoas ao redor insistem em te sugerir que é melhor manter o silêncio. Dada às dificuldades e limitações com as palavras, que ora me imponho ora me são impostas, tenho optado pela linguagem escrita. Ainda faço o tipo “escreva cartas e queime-as”, textão de facebook, instagram, quando me disponho a publicá-los. Mas só o ato de escrever e ler em voz alta tem dado tanto sentido ao não dito, que é libertador.

Eu me lembrei aqui de um texto de Conceição Evaristo que diz o seguinte: “Gosto de escrever, na maioria das vezes dói, mas depois do texto escrito é possível apaziguar um pouco a dor, e digo um pouco […] Escrever pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando sobre isso. Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosia esperança. Gosto de dizer que a escrita pra mim é o movimento de dança-canto que meu corpo não executou, é a senha pela qual eu acesso o mundo.”⁶

Foi lendo outras mulheres que aprendi, que escrever é uma forma, como teoriza bell hooks⁷, de fazer com que a história possa ser interrompida, apropriada e transformada através da prática artística e literária. Ao falar de seu processo de escrita, ou de transformar em linguagem aquilo que se sente na pele, Grada Kilomba ⁸ chama atenção para o fato de que ao escrever ela deixa de ser outra, deixa de ser objeto, e passa a ser sujeito. Escrever é um tornar-se com direito a definir suas próprias realidades. Por meio da escrita ela descreve sua própria história ao invés de ser descrita. Para a autora, além de um alento, escrever é uma forma de troca de afeto, é um ato político.

Foi por meio dos escritos e falas de outras mulheres que aprendi também que “meus silêncios não me protegeram e não me protegerão de nada” e como um ato político e de transbordamento de afetos recentemente publiquei um de meus textos, desses que costumo rasgar depois de escritos. O texto se chama “Pessoas como eu desistem logo…” e foi publicado no portal Geledés⁹. Eu o escrevi no auge das divulgações midiáticas do movimento Vidas Negras Importam, e do assassinato televisionado de pessoas negras, que junto com os mortos da Covid, nos deixam (nós e eles) ser ar. No texto narrei episódios de racismo vivenciados por mim desde a infância, passando pela adolescência, vida acadêmica, a solidão da mulher negra e a dor de não saber: Quem mandou matar Marielle?

Tomei um susto com a repercussão. Recebi e-mails calorosos, troquei relatos com outras mulheres negras, desconhecidas, de lugares distantes e que me ensinaram sobre a cura por meio dos afetos, sobre estar sozinha, sobre a necessidade de falar. E mais do que isso, sobre o modo como o outro/ a outra, falado(a), ouvido(a), lido(as) nos lembra que não estamos sozinhas no mundo. “Senti doer meu estômago também!”. Foi assim que conheci a professora Gleys Ramos (UFT) e recebi o convite para estar aqui hoje. Também recebi curtidas e elogios de alguns dos colegas que protagonizaram os episódios de racismo narrados. Teriam eles se reconhecido no texto? Não sei, mas senti um prazer íntimo ao saber que haviam lido, e que minhas palavras tinham chegado até ali. As palavras que em outro momento eu silenciei.

Em tempos onde nos falta o ar e não conseguimos respirar, ouvir tantas palavras de afeto é de encher os pulmões e fazer pulsar o coração. Mas o processo ainda é longo. Ainda há muito para ser dito e muitos silêncios a serem rompidos, o medo não se esvai de uma ora pra outra.

Queira ser mais otimista! Queria que as mulheres que nesse contexto de pandemia tem sofrido com o aumento exponencial da violência dentro de suas casas pudessem, com segurança, romper o silêncio e colocar suas palavras pra circular pelo mundo. Queria que o choro das mães que choram em silêncio as mortes de seus filhos fosse ouvido de um polo a outro dessa Terra, que não é plana. Queria que pudéssemos sermos ouvidas sem sermos chamadas de loucas por amplificar o som de nossa voz. Queria que não houvesse assédio […] racismo. Queria vacina! Queria escrever sobre amor e revolução e outras tantas coisas que não cabem aqui […] Queria não, quero! E quero tudo isso em voz alta. Escrevo e leio em voz alta aquilo que desejo na esperança que as palavras tenham força de botar em movimento, que sejam a máquina que faz fazer.

Referências

¹ https://ii-simposio-feminista-da-uft.webnode.com/

² VIEIRA JÚNIRO, Itamar. Torto Arado. Editora Todavia, 1ª Edição, 2019.

³ Sobre esses temas consultar o trabalho de Natalália Escobar Garcia (Não é minha culpa! Enfrentando o assédio sexual e a violência de gênero no trabalho de campo. In: Revista Cadernos de Campo, Vol.27, nº 1 2018) e o de Mariza Corrêa (A natureza imaginária do gênero na história da antropologia. In: Cadernos Pagu, 1995)

⁴ MIRANDA, Letícia. A foça do estômago e o combate ao terror. In: De bala em prosa. Vozes da resistência ao genocídio negro. Editora Elefante. 2018. p.49-52. (Venda proibida).

⁵ LORDE, Audre. A transformação do silêncio em linguagem e ação. In: Portal Geledés, 2015. (https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao/)

⁶ CONCEIÇÃO EVARISTO. Maria da. “Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face”. In: BARROS, Nadilza Martins de: SCHENEIDER, Liane (Orgs). Mulheres no Mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa. Editora Idéia, 2005, p.202.

⁷ bell hooks. Olhares negros: raça e representação. Editora Elefante, 2019. 356p.

⁸ KILOMBA, Grada; Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.

⁹ ALMEIDA, Lígia Rodrigues de. Pessoas como eu desistem logo… In: Portal Geledés, 2020. (https://www.geledes.org.br/pessoas-como-eu-desistem-logo/)

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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