Racismo e menoridade intelectual da branquitude

Deixando de lado o gesto retórico da sagaz narradora – gesto que contém muito de capitalização narcísica –, o caso serve não só para formarmos um juízo a respeito da reação rancorosa da pessoa civil Cíntia Moscovich, mas também é importante, na verdade, para pensarmos sobre um problema fundamental da branquitude: sua imaturidade e despreparo com relação aos embates suscitados pelas tensões raciais. Foto: Youtube/Reprodução

Por Ronald Augusto Do Sul21

Sensível leitor, imagine um escritor tido e havido, tanto por seus pares quanto pelo público em geral, como grande e importante. Muito bem, imagine que esse escritor faz uma de suas viagens internacionais e ao desembarcar, por exemplo, no aeroporto Charles de Gaulle por algum motivo se perde no labirinto do glorioso terminal aeroportuário. Imagine que desafortunadamente um funcionário negro do lugar não lhe dá a menor conversa e começa, inclusive, a tirar a maior onda de sua desatenção ou incapacidade para se localizar nesse dédalo. Agora imagine que esse escritor renomado, no momento em que se desvencilha da situação, encontrando a saída, se vira para o funcionário (lembre-se de que ele não o serviu conforme o desejado e ainda foi debochado), se vira para o funcionário e diz em tom de desforra: “Vai te catar, negão!”. Ademais, imagine que o escritor confessa que sempre achou o racismo abominável e injusto. Imaginou o quadro?

Pois bem, com o intuito de relativizar ou descobrir uma desculpa para o comentário racista de William Waack, a escritora Cíntia Moscovich em sua página do Facebook confessou, por assim dizer, esse episódio no Charles de Gaulle em que foi impelida à sua revelia a deparar-se com o próprio racismo adormecido. Ao que parece ela quis dar a entender com essa anedota que mesmo nas melhores famílias, consideradas certas variáveis, ninguém está livre de reforçar impensadamente o racismo, reproduzindo determinados modos de desrespeito e de violência. Como a reação meio que surgiu a partir de um contexto de stress (a narrativa assim o sugere), caberia perguntar se a escritora nesta situação teria sido racista ou não. A escritora concede aos seus seguidores a prerrogativa de fazer esse “julgamento”; ela afirma algo como “agora me julguem” apelando ao depoimento de um cinegrafista negro que saiu em defesa do jornalista da Globo. Nessas ocasiões sempre vem à tona o clássico colaborador negro cuja solidariedade empenhada ao amigo branco é apresentada como prova de que todos os outros negros estão equivocados em descrever seu parceiro como racista. O posicionamento evasivo da escritora – mesmo tendo sido mais tarde rasurado na confissão – tem estreita relação com a lógica do pathos hagiológico. A carne branca e ferida dos santos. O mártir que se oferta à imolação pública, porém em vista do perdão que, com certeza, um dia virá, ou seja, quando os demais recuperarem a consciência do que é justo.

Entretanto, deixando de lado o gesto retórico da sagaz narradora – gesto que contém muito de capitalização narcísica –, o caso serve não só para formarmos um juízo a respeito da reação rancorosa da pessoa civil Cíntia Moscovich, mas também é importante, na verdade, para pensarmos sobre um problema fundamental da branquitude: sua imaturidade e despreparo com relação aos embates suscitados pelas tensões raciais; seu trauma no que respeita ao diálogo franco e direto com negros que não lhe fazem obséquios; sua dificuldade de escuta; sua resistência em se colocar na situação de objeto de crítica sem precisar apresentar-se, de repente, como vítima de “racismo reverso”, tentando com isso desqualificar nossos questionamentos.

Essa imaturidade, acolhida por longos anos de proteção e facilidades facultados indecorosamente às pessoas brancas pelas estruturas patrimonialistas da sociedade, parece ter transformado personalidades como Cíntia Moscovich em anacrônicos criançolas que ainda não aceitaram o fato de os amiguinhos negros das brincadeiras de infância agora se negarem a figurar como a cavalgadura a ser açoitada.

Ser advertido, contrariado, zoado, driblado por um negro é inaceitável para a maioria dos brancos que seguem a cartilha do peralta Brás Cubas. O moleque não concorda que o sinhozinho monte nele mais uma vez. Quando um branco é impedido de dar continuação a esse estado de coisas típico da branquitude autocentrada, ou ele se prostra na condição de vítima alegando que estamos sendo agressivos ou ele, após concordar que, sim, o racismo é terrível etc, tenta nos ensinar como devemos reagir ao racismo, pois ele, e somente ele, assume a pretensão de ver o quadro completo.

A branquitude, de que muitos brancos são emanações distraídas ou reificadas, permite que se refugiem na ironia reativa, essa forma risonha de não dar ouvidos não somente às questões que os negros cada vez mais lhes interpõem, mas também à pequena, porém perfurante incerteza que levam em si mesmos e que jamais cessa de entranhar-se feito um incômodo, porque no desesperado movimento de afirmarem o que somos ou o que deveríamos ser sempre em relação a eles, muitos brancos jamais se reconhecem minimamente a si próprios. Não acredito que sejam tão estúpidos quanto parecem. Nem que sucumbam, em fim de contas, à angústia da ascendência. No entanto, resta uma questão óbvia, mas não irrelevante: se o funcionário atrevido do aeroporto Charles de Gaulle fosse branco será que a irritadiça sinhazinha, Cíntia Moscovich, o colocaria no devido lugar berrando, num impulso, “Vai te catar, branco azedo!”? Ah, esses criançolas e suas peraltices de um lado e de outro da linha que separa a estupidez e a crueldade.

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