Como mulher, assim como professora, minha percepção sobre a desigualdade social do gênero feminino nunca me foram indiferentes. Sempre permearam minhas vivências, tanto pessoais como profissionais. Mas foi no início do processo de mestrado que realmente me aprofundei nas questões de gênero. Com este aprofundamento no estudo histórico e conceitual das desigualdades que permeiam tudo que é relacionado ao “feminino” pude também contar com um movimento de reconstrução pessoal, de reformular tudo o que estava (nunca acabado) naturalizado porque nascemos e somos criados dentro de uma leitura de mundo, de uma história androcêntrica cultural. Entender que tudo que tange as masculinidades e as feminilidades é relacional, ou seja, que é uma construção social e que, portanto, pode ser mudado, levou certo tempo. Penso que é um exercício contínuo, em constante processo.
por Divimary Borges, do Ensaios de Gênero
A pesquisa em tela foi orientada pela seguinte pergunta: como as crianças constroem suas relações de gênero inseridas em uma pedagogia tido como libertária? (Foto: Divimary Borges)
Na área da Educação, a qual pertenço, a primeira iniciativa de investigação era em um contexto público, ou seja, em uma escola pública. Porém, com o passar do tempo, depois de realizar várias leituras e através de novas descobertas, percebi que esse já era um campo com muitas produções. Já existiam muitas análises, inclusive sobre as questões de gênero, apontando uma tendência à manutenção de um sexismo que persiste na sociedade e, portanto, que permeia as famílias e influenciam as crianças. A partir desta visão, conversando sobre esta problemática com um colega, surgiu então a ideia de investigar uma instituição diferente, quiçá progressista. Progressista e particular, já que ambos os campos haviam despertado em menor proporção o interesse da academia. Decidida, fui à busca de acolhimento da minha pesquisa mandando e-mail para algumas escolas. Uma delas aceitou que eu fizesse minha observação durante um período de seis meses. Com esse artigo quero, portanto, contar um pouco sobre essa experiência, minhas análises e algumas conclusões que cheguei.
A pergunta que regia meu olhar empírico sobre as 20 crianças que investiguei era: Como as crianças constroem suas relações de gênero inseridas em uma pedagogia que, pelo menos a priori, imaginamos libertária? Proponho a investigação da socialização das crianças como uma autonomia na qual elas reproduzem, mas também produzem seus posicionamentos de meninos e meninas em um espaço em que a livre iniciativa é proporcionada como princípio pedagógico. Para isso foi importante a escolha de uma escola que rompesse com o modelo de escola que conhecemos como “tradicional”. Sabemos que as características femininas e masculinas estão dispostas simbolicamente de maneira binária ainda nos dia de hoje, e que as crianças já percorreram um caminho social até chegarem à escola, porém, se o gênero é construído através das relações, então as meninas e os meninos também constroem significados individuais entre suas diferenças sexuais de forma flexível e plural, ou ainda, como diz Connell (2009), as crianças têm capacidade de criar seus modos de serem meninas e meninos se engajando nesse processo através de resistências e dificuldades. Portanto, se considerarmos as condições mais favoráveis, em que se respeitem suas ludicidades, criações e desejos, haveria também condições desses agentes alargarem e modificarem os conteúdos simbólicos da cultura em que vivem.
É preciso envolver-se com o cotidiano das crianças para, de forma interativa, conhecer sua cultura e hábitos. (Foto: Divimary Borges)
É necessário frisar também minha experiência pessoal dentro de uma instituição diferente das que conhecia até então. Não foi sem estranhamento que adentrei em uma escola com princípios pedagógicos democráticos na qual não existiam salas com carteiras enfileiradas, em que todos participavam da tomada de decisões sobre as regras para boa convivência etc. Neste contexto, ler “A República das Crianças”, de Helena Singer (1997), foi fundamental. Essa preparação teórica antes da minha entrada em campo ajudou a compreender a essência deste movimento, caracterizado pela autonomia das crianças e cuja origem encontra-se na Rússia, em 1857, com a Escola de Yasnaia-Poliana por Liev Tolstói. Na prática, observar as crianças indo e vindo conforme suas vontades e interesses era uma novidade e a sensação de desconforto inicial me levou a confrontar os limites, do meu universo simbólico, ao reconhecer outros territórios. Estabeleci um olhar sem juízos de valor como enfoque etnográfico, um posicionamento que pretendia desnaturalizar e refletir a assimilação da cultura e hábitos de um espaço com o qual não estava acostumada. Através da convivência, me impregnei dos valores e comportamentos, acompanhando a rotina diária e anotando tudo em um diário de campo, inclusive minhas impressões.
A dúvida seguinte seria: como agir na interatividade com as pessoas que compunham aquele lugar? As experiências etnográficas de Corsaro (2009) em uma escola italiana marcou meu posicionamento perante as crianças para conseguir obter uma visão “de dentro” de suas relações, objetivo principal da pesquisa. Assim, aguardei a aceitação delas, conforme a construção de cumplicidade, para uma aproximação. Consegui estabelecer uma posição não-hierárquica ao mantê-las no comando da aproximação. Ao respeitar suas vontades como sujeitos de ação e de direitos, com a conquista da confiança e da cumplicidade, percebi suas capacidades de ação e reflexão. Essa metodologia, inspirada na Sociologia da Infância, foi a base de toda a atividade empírica.
A partir destes princípios, realizei no primeiro semestre de 2004 observações e anotações detalhadas a respeito das relações entre meninas e meninos, para posterior reflexão e análise: mecanismos de aproximações e distanciamentos, quando o gênero interfere nas escolhas, quais são os agrupamentos e em que ambientes escolares se delimitam ou não, dentre outros. Quem faz uma pós-graduação cuja pesquisa se pretende qualitativa sabe que o período que temos para desenvolver todo este processo é por vezes curto, e o trabalho nos parece sempre inacabado. Porém, citarei a seguir algumas considerações que consegui trazer a tona. Vale lembrar que as pistas que desvelam o cotidiano tais como vivenciadas é um processo constante de construção individual com identificações que se transformam continuamente, conforme Melucci (2004) coloca no conceito de identização.
A assembleia era uma ocasião em que crianças e professores/as sentavam para conversar sobre a organização e o cotidiano da escola, buscando benefícios coletivos. (Foto: Divimary Borges)
Logo nos primeiros dias participei de uma reunião que acontece semanalmente na escola, chamada de Assembleia. Nesta ocasião, tanto professores e professoras como as crianças, conversam sobre a organização do material escolar, dos horários, da ocupação dos espaços, dos comportamentos etc. Em outras palavras, todos colaboram para que haja benefícios na convivência coletiva. Neste momento, notei, dentro de uma roda em torno da qual os agentes estavam dispostos, que meninas sentaram de um lado e os meninos de outro. A disposição espacial foi representada através da oposição entre masculino e feminino. Conversando posteriormente com os educadores, percebi que eles até então não haviam se atentado a isto. A partir desta observação, procurei entender os significados de masculinidade e feminilidade de acordo com a construção social estabelecida naquele ambiente em particular para alcançar as concepções das crianças através de suas falas e comportamentos. Nas brincadeiras com uso de fantasias, por exemplo, o menino se intitulava “prefeito”, enquanto as outras três meninas que brincavam junto eram de “madame”, “fada” e “empregada”. Desta vez pude considerar mais um par homólogo de representação simbólica do forte/frágil, assim como uma posição hierárquica. Durante o lanche, apesar de teoricamente todos terem o dever em colaborar com a limpeza do ambiente, os meninos resistiam em participar.
Uma observação importante foi perceber a reprodução dos simbolismos femininos e masculinos nos espaços escolares. Para além do momento da Assembleia, resolvi fazer algumas anotações quantitativas sobre os agrupamentos de meninos e meninas em outros momentos. Observei que os meninos se apropriaram do espaço “dos computadores”, que ficava em uma sala no andar superior, enquanto as meninas se dividiam em alguns grupos transitórios e espalhavam-se pela escola. Os meninos permaneceram neste espaço em seus tempos livres durante toda minha permanência de pesquisa, já as meninas que por vezes tentavam interagir com os meninos sem sucesso, percorriam e ocupavam todos os espaços.
Para além de outras observações realizadas, esta foi importante para a percepção da manutenção constante da constituição das identidades masculinas. Primeiro, pela desvalorização ao universo feminino, ao se afastarem das meninas e sequer realizarem qualquer movimento de aproximação. Este fato ganhou evidência quando entrou na escola um menino novo. Ele aceitou entrar em uma brincadeira em que só havia meninas. Os meninos também entraram na atividade durante um primeiro momento, para logo em seguida o levarem para a sala dos computadores. Segundo, quanto à fiscalização entre pares buscando a manutenção das masculinidades: os meninos “mais velhos” exerciam um efeito controlador que os afastava do universo feminino.
As feminilidades pareciam dotadas de maior flexibilidade com relação aos padrões de gênero, se comparada à rigidez das masculinidades.
Com a disposição de maior tempo livre do que nas escolas comuns, ficou mais nítida a percepção da organização dos espaços e tempos pelas crianças através de suas escolhas, assim como a resistência dos meninos contra a permeabilidade de posicionamentos de gênero que tratava de reforçar um contínuo trabalho de “fronteiras das relações de gênero” (CORSARO, 2011, p. 182) entre os grupos.
Apesar de usar neste artigo apenas algumas passagens utilizadas nas categorias de análise da dissertação de mestrado, considero estas relevantes de minhas impressões sobre a apropriação da divisão sexual binária entre as crianças. Apesar de uma tendência crescente a uma nova abordagem sobre o pertencimento de gênero e sexualidade nos cinemas, na música, nos programas de televisão, ou nos movimentos feministas, ainda caminhamos a passos lentos na prática do dia-a-dia. A escola se apropria pouco das transformações sociais, submersas em uma visão normatizante, colocando o androcentrismo como neutro sem abrir espaços de debates para deslegitimá-lo. Se considerei de antemão que uma escola com princípios democráticos e, assim, com horizontalidade das hierarquias do saber e das relações, poderia levar à caminhos mais questionadores, a imersão empírica me mostrou que isto não ocorreu. No entanto, ressalto que percebi uma notável flexibilidade das feminilidades entre as meninas, resignificando múltiplas formas de ser menina para além de valores simbólicos femininos, como a extroversão e a ocupação dos lugares de forma ampla. Exemplo disso é a seguinte fala que tive a oportunidade de escutar: “pensando bem, é mais fácil menina brincar com brinquedo de menino ou usar roupas pretas, azuis, do que menino gostar de rosa”. Talvez, os movimentos feministas tenham propiciado uma abertura de fronteiras que hoje estão fazendo parte do quadro de novas dinâmicas de ação de meninas e mulheres. Não nos espantamos, por exemplo, com mulheres jogando futebol, mas não consideramos com a mesma naturalidade o fato de meninos brincarem com bonecas ou dançarem balé. Por isso, o controle rígido por parte dos meninos na escola pesquisada na manutenção das suas masculinidades talvez seja um reflexo da pouca flexibilização da masculinidade também na sociedade. Sendo assim, resta à educação e à escola, apesar de ser um espaço de manutenção como também um lugar de transformações, oferecer um ambiente favorável às desconstruções de padrões engessados que não nos servem mais enquanto sociedade.
Mesmo em ambientes orientados por pedagogias libertárias e democráticas, há espaço para que desigualdades de gênero se façam presente.
Acrescento ainda, em minhas considerações finais, a importância de se olhar com particular atenção para as construções de masculinidades que estão se formando no interior das escolas. A invisibilidade das mulheres na presença de livros didáticos, literários, dentre outros materiais utilizados pela escola, colaboram para a manutenção da desigualdade de gênero. Isto pode (e deve) ser desconstruído pelos(as) profissionais da Educação. A disseminação sobre os direitos das mulheres privilegiaram a promoção da mobilização de mulheres, criando um panorama com variadas produções de livros, filmes, programas que viabilizam diálogos e reflexões. Conhecer a história de mulheres que exerceram importantes papéis sociais como Dandara, na demonstração de resistência à escravização do povo africano, ou Bertha Lutz, como alguém que lutou pelo direito ao voto das mulheres, assim como Malala na luta pelo direito ao estudo das meninas, contribui para uma visão múltipla das feminilidades, com representações de mulheres tão fortes, lutadoras e admiráveis quanto os homens que estudamos reiteradamente durante o percurso escolar.
Divimary Borges é paulistana do bairro da Mooca e cinéfila inveterada. Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e mestre em Educação nesta mesma instituição com financiamento CAPES, encontrou na pesquisa sobre as Questões de Gênero uma motivação para lecionar: combater qualquer tipo de preconceito no ambiente escolar. Trabalha com projetos interdisciplinares na escola que valorizem o respeito à diversidade.