Renato Janine Ribeiro: Possuir, dar, comer

O que pode significar a apropriação de certas palavras outrora de uso masculino pelas mulheres

por Renato Janine Ribeiro * no ZH

* Professor titular de Ética  e Filosofia Política na Universidade de São Paulo. Escreve quinzenalmente no caderno PrOA.

Até algumas décadas atrás, livros e jornais usavam a palavra “possuir” para descrever, do ponto de vista do homem, a relação sexual. Mas hoje ninguém mais emprega esse verbo. Ele passava a ideia de que a mulher se tornaria posse – ou propriedade – do homem. Em nossa época, que valoriza a liberdade individual, inclusive feminina, tal mudança é significativa.

Mas há outras palavras que poderiam transmitir uma ideia parecida, e que hoje são cada vez mais usadas. Como “dar”. Muitas mulheres não sentem problema em dizer que vão “dar” a alguém. Em português, só a mulher dá, o homem não, numa relação heterossexual. Houve um tempo em que “dar” diminuía. Nas culturas machistas da honra, um homem aumentava de valor ao pegar mulheres de outros. O que elas “davam” para ele, ele tirava dos outros. Na cultura machista, a mulher não tem honra própria. Ela apenas porta a honra do macho de quem depende, pai, marido ou filho. Possuir a mulher alheia é tirá-la do dono.

Talvez a valorização feminina do “dar” se dê porque, quando a mulher usa esse verbo, ela lhe confere um tom de brincadeira, de jogo, muito adequado ao sexo como diversão. Não é raro ela dizer que “dá para quem quer”, isto é: longe de se diminuir dando a um outro algo de que ela abriria mão, que deixaria de ser seu, ela escolhe a quem quer dar. Pode ser um, pode ser outro: a expressão virou um significante forte da liberdade sexual feminina. Ela dá e não perde. Dá o corpo, mas ele continua sendo dela, aliás, mais dela do que nunca, justamente porque dá. Dá prazer, mas não transfere posse nem propriedade.

“Comer”, que era signo da superioridade masculina sobre as mulheres, foi igualmente apropriado por elas. Perguntam se um homem quer comê-las. Isso não significa mais passividade. Também emite um sentido lúdico.

Será este um sinal interessante de como as mulheres assumiram o controle de palavras que antes tinham uma conotação machista, mas nos últimos anos se tornaram uma grande brincadeira? Será que o poder crescente do que chamamos de feminismo não passa só pela seriedade do politicamente (ou sexualmente) correto, mas também por um avanço enorme do lúdico? Isso não é apontado nas críticas machistas, ou nos temores masculinos, ao feminismo. Quando homens atacam o empoderamento das mulheres, costumam acusá-las de chatas, pouco femininas, masculinizadas. Dizem, como li nos comentários às fotos de Paula Salazar, que há poucos dias passeou sua seminudez no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que lhes falta um macho… Para os machistas, a imagem das feministas como mulheres carentes é uma espécie de tábua de salvação. Eles seriam essa salvação.

Mas a redução da mulher livre à chata traduz o medo que sua liberdade de brincar causa a muitos homens. Talvez o medo machista não seja tanto à mulher briguenta que concorre no mercado de trabalho – mas acima de tudo à mulher que se permite brincar com eles, inclusive no sexo.

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