O próximo ano pode ser decisivo para o projeto de lei 73/99 que prevê a inclusão de alunos em universidades públicas brasileiras por meio de cotas sociais e raciais. O PL tramita há 10 anos e o governo espera colocá-lo em pauta na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para ser votado ainda em 2010. Tudo indica, no entanto, que a tarefa não será simples.
Agência Brasil |
Demóstenes Torres (arquivo-iG) |
“Recebi vários reitores de universidades reclamando do tamanho da cota. Pretendo incluir no meu texto que ela seja reduzida para 20% dos alunos que tenham vindo do ensino público”, diz o senador Demóstenes Torres (DEM – GO), presidente da CCJ.
A proposta a ser votada prevê a reserva de 50% das vagas das universidades públicas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas da rede pública.
“A votação não deve acontecer tão cedo, pois o governo está segurando. A ampla maioria prefere a cota social para alunos do ensino público, mas o governo quer também a cota racial. Já estou com meu voto pronto, mas não sei quando a votação vai acontecer”, afirma Torres.
A senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), relatora do projeto de lei, acredita que a proposta seja votada e aprovada ainda em 2010. “A sociedade brasileira quer essa lei. O Demóstenes (Torres) não pode alterar o texto da proposta. Se ele quiser, tem de apresentar um novo projeto de lei se o atual não for aprovado”, explica.
O secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação, André Lázaro, não entende o porquê da demora na aprovação. “Está havendo um desconforto no Senado para aprovar a lei das cotas. Eles praticamente derrubaram a questão racial. Isso me causa um estranhamento porque o Senado aprovou com facilidade os termos do ProUni (Programa Universidade para Todos), que reserva uma cota das bolsas para negros e índios. Quando a questão foi com as universidades particulares, ela foi aceita fácil, mas com relação à universidade pública virou um problema.”
Uma audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), entre os dias 3 e 5 de março de 2010, sobre cotas raciais promete esquentar as discussões. O encontro é em razão de ações ajuizadas, uma de descumprimento de preceito fundamental e um recurso extraordinário.
Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil |
Serys Slhessarenko (à dir.) recebe representantes de movimentos pró-cotas raciais (arquivo-iG) |
A ação de descumprimento de preceito fundamental foi ajuizada em julho de 2009 pelo partido Democratas. O questionamento é sobre os critérios para classificação dos estudantes no sistema de cotas da Universidade de Brasília (UnB), que reserva 20% das vagas para estudantes negros, pardos e indígenas. Não há cota sócio-econômica.
O DEM alega que a instituição viola preceitos fundamentais inscritos na Constituição Federal, como o princípio republicano e da dignidade da pessoa humana; o dispositivo constitucional que veda o preconceito de cor e a discriminação; o repúdio ao racismo; igualdade, legalidade, direito à informação dos órgãos públicos, combate ao racismo e devido processo legal.
O recurso extraordinário foi proposto por um estudante reprovado no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), embora tivesse alcançado pontuação maior do que alguns candidatos admitidos no mesmo curso pelo sistema de reserva de vagas destinadas a estudantes egressos do ensino público.
Cotas raciais x sócio-econômicas
O projeto de lei 73/99 tem uma história longa de debates e discussões. A proposta original, de autoria da deputada federal Nice Lobão (DEM – MA), previa a reserva de 50% das vagas das universidades públicas para estudantes egressos de escolas da rede pública que seriam avaliados de acordo com o coeficiente de rendimento. Não tinha caráter racial.
Durante a tramitação, o projeto de lei recebeu substitutivos e agregou outras propostas. Hoje, o texto que aguarda aprovação prevê a reserva de 50% das vagas das universidades públicas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas da rede pública de ensino.
Dentro desta faixa, metade deve ser destinada a jovens de baixa renda e a outra metade, dividida entre a população negra e indígena, de acordo com a proporção étnica do Estado registrada no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O senador Demóstenes Torres tem se mostrado um dos principais opositores da cota racial e em diversas reuniões da CCJ o debate chegou a ficar acalorado. “O racista tem de ficar dentro de casa, calado. Não sou a favor do racismo, mas a cota tem de ser para quem não teve oportunidade, por causa da pobreza, assim a coisa se nivela”, defende.
Assim como Torres, o presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), Simon Schwartzman, é contrário à cota racial. “O problema no Brasil não é a discriminação no acesso ao ensino superior, mas a má qualidade do ensino público. Não vai ser oferecendo mais vagas que o problema será resolvido.”
Schwartzman, que atua na área de políticas sociais voltadas para educação superior, vai além e defende que não é a colocação do indivíduo numa faculdade que ampliará as chances dele no mercado. “Alguém que nunca aprendeu matemática não deveria entrar numa faculdade para aprender. Deveriam ser oferecidos outros meios, como aulas de reforço, cursos técnicos ou algum curso especial, em que essa pessoa possa ter mais oportunidades.”
O governo, por sua vez, defende a cota racial. “As ações afirmativas não são importantes somente para o ingresso do estudante no ensino superior, mas também para reforçar a autoimagem do jovem negro e indígena. É importante inclusive para que o ambiente acadêmico receba contribuições de pessoas que têm culturas diversas”, diz o secretário do MEC André Lazaro.
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Zulu Araújo, da Fundação Palmares |
Zulu Araújo, presidente da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, vê o projeto como positivo: “A lei é importante para que as cotas consolidem-se enquanto política de estado.”
O antropólogo José Jorge de Carvalho, professor da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia e Inclusão no Ensino Superior (INCT), critica o fato do projeto de lei não definir um prazo para a prática das cotas nem metas para as universidades. “É preciso saber qual é o nosso horizonte, onde queremos chegar. Não dá para fazer uma lei de cotas, sem uma simulação da aplicação ou um plano de metas”, comenta.
“Do jeito que a proposta está, as universidades não têm autonomia nenhuma para debater o sistema de cotas. A lei homogeniza o País, mata a diversidade e a discussão. As instituições passam apenas a obedecer uma lei federal, não há debate interno, nem aceitação profunda do processo.”
Para o antropólogo, a política do governo deveria incentivar também a presença de negros em níveis da academia como pós-graduação, mestrado e doutorado. “Se o objetivo é ter um sistema acadêmico que tenha igualdade racial, a graduação é apenas a primeira etapa. Mestrado, doutorado e a carreira de professor também precisam da presença de negros.”
De acordo com uma pesquisa feita por Carvalho em seis grandes universidades públicas – USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e UnB (Universidade de Brasília) -, os negros representam 0,6% do corpo docente.
“É menos de 1% de professores negros nas universidades mais importantes do País, que formam ministros, secretários gerais, diretores de estatais, executivos de bancos. Este número é menor do que o encontrado na África do Sul nos tempos de apartheid”, enfatiza.
Fonte: Último Segundo