Só eu canto a dor que é minha

Um relato emocionado de uma leitora aos Jornalistas Livres sobre a aceitação do amor LGBT

por Flávia Martinelli / Jornalistas Livres

Num curto trajeto entre minha casa e o metrô, ouvi a conversa de dois senhores sobre a vizinha de um deles. O homem afirmava, cheio de certezas, que a moça havia tentado suicídio para “chamar a atenção da família”, afinal “ela tinha escolhido essa vida de chupar buceta e agora simula uma depressão para causar pena”. Quis chorar, gritar, interromper a conversa, saltar do ônibus em movimento. Mas a única coisa que consegui foi tentar acompanhar o raciocínio daquele homem que, sem o mínimo de empatia, reduziu a vida de uma pessoa a dois pilares: homossexualidade e depressão (simulada, em sua leitura).

Eu, como homossexual e diagnosticada com depressão, fiz uma rápida busca na internet e encontrei uma pesquisa feita pela Universidade de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos, que se debruçou sobre a história de 246 jovens LGBT, e apontou que pelo menos um terço do grupo tentou suicídio em algum momento de sua vida. Outro resultado da rápida pesquisa me levou a um site que contava a história do jogador de Rugby Sam Stanley, de 23 anos. O atleta declara que considerou o suicídio como alternativa quando ainda não aceitava a própria sexualidade: “Eu estava de pé sobre uma ponte com vista para uma rodovia em Essex, e era como se eu pudesse me livrar da dor de uma só vez. Você está tão preocupado com o que as pessoas vão pensar. Pensei que não poderia ser um jogador de rugby macho do jeito que eu era, e não havia mais nada que eu quisesse fazer com a minha vida”.

Pois é, a vizinha daquele senhor não foi a única. O processo de auto-conhecimento pelo qual nós, homossexuais, passamos, não é nada simples. Esse texto é anônimo por um motivo: minha família não sabe que sou lésbica nem que tenho depressão. Resumindo: eu ainda estou no meio do processo. Faltam muitos passos, mas tenho consciência de que já caminhei quilômetros.

Quando beijei minha namorada pela primeira vez, já não sabia mais quem eu era. Parece absurdo, ridículo, mas não é. A gente constrói uma identidade e se apega a ela. Eu tinha certeza da minha heterossexualidade, afinal havia namorado dois homens anteriormente. Por que agora, aos 20 anos, minhas pupilas se dilatam por uma menina? Por que a pele dela me atrai? Por que eu só penso nela? Ela é minha amiga, eu sei, mas esses sentidos vão além. Não, não pode ser. Eu sou hétero! Eu sou hétero? E se eu não for hétero, como eu vou fazer? Vou terminar qualquer coisa que seja isso agora. Não posso continuar com ela. Mas como eu vou continuar sem ela? E por que eu deveria me ausentar dessa reciprocidade? Por ser hétero, simplesmente?

O passo seguinte foi viver o que os olhos pediam, incessantes. Eu podia dizer que foi tudo lindo, que eu me encontrei, que finalmente me senti viva. Sim, tudo isso é (também) verdade. Mas por muito, muito tempo meu namoro foi uma grande neura. Eu tinha medo de que alguém nos visse, de que alguém comentasse, de que falassem de nós. Tinha medo das violências cotidianas, e das mais graves que poderiam (e ainda podem) acontecer no ambiente familiar. Eu falava com a minha namorada o tempo todo, mas ficávamos pouco juntas e em lugares completamente isolados. Sim, o começo foi muito difícil. Ela teve – e ainda tem – uma paciência sem fim comigo.

Trouxe pra esse relacionamento a identidade, já construída, da menina que não quer casar, que quer ter sua liberdade, sem perceber que relações diferentes podem mudar nossos planos pro futuro. Mas, calma, que planos? Pois é, esse era um dos grandes problemas: eu não era capaz de fazer nenhum plano. Não conseguia pensar em como seria a vida daqui cinco anos, nem conseguia pensar no almoço do dia seguinte. O que me impedia? O medo de existir era tão grande que eu não conseguia imaginar uma vida.

Tive de procurar muita ajuda pra entender que eu não preciso estancar meus sentidos para me encaixar numa identidade previamente estabelecida. Meu psiquiatra disse que minha depressão vem se agravando desde os meus 15 anos, quando comecei a esconder minhas vivências: “ninguém precisa saber o que eu sinto”, “ninguém precisa saber o que eu vivo”, “ninguém precisa saber que eu existo”. Essa foi minha bagagem e meu suporte, por anos. Em 2015, porém, tive uma crise depressiva que me ausentou de juízo crítico sobre a minha própria vida. Foi quando procurei ajuda psiquiátrica e fui, de fato, diagnosticada com depressão (F33.2).

Sim, eu já considerei suicídio. Sim, eu poderia ser aquela vizinha da qual os senhores falavam no ônibus. Hoje eu estou em tratamento e minha vida finalmente se regularizou. A cura não é linear, sabemos, e ainda sofro de escoriação neurótica (ou skin picking). Minha doença nada tem a ver com a minha homossexualidade, mas tenho certeza de que a homofobia diária influenciou no agravamento de meu caso.

Agora, no meio do caminho, já me imagino casada com a minha namorada. Faço planos de viagem com ela, penso em como ajudá-la, decoro mentalmente nossa casa, gravo nosso riso na memória. É isso que me mantém viva. O amor. Assim, ele mesmo. O amor, de puro entendimento e enlace.

Espero que a moça de quem os homens falavam sobreviva, viva, erre, encante, ame. Que ela resista a todo ódio, tenha alguém pra seguir de mãos dadas, e que sua história vire vida. Como já disse RoRô, “Só eu canto a dor que é minha, me deixe ser.”.

Deixem a gente (re)existir em paz.

 

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