Eu preciso confessar uma atitude que venho tendo, de maneira recorrente, já faz algum tempo: o ato de procurar por fotos de homens pretos de cabelo liso no Google.
Desde criança qualquer pessoa de cor já passou pela experiência de não se encontrar em desenhos e seriados de TV. É quase um rito de passagem, notar que as percepções de beleza, o que deve ser visto, não repassa pela aparência de seus semelhantes. Eu passei por essa experiência e sem duvida alguma vibrei de alegria ao conhecer produções antigas e perceber novas criações que tensionavam os padrões estéticos ao que se estava acostumado.
Mas de certa forma, para mim, ainda faltava algo. Vindo de avós e avôs tanto brancos quanto pretos retintos de cabelo 4b/4c, eu nasci sendo um preto de pele clara e de cabelo liso. Ao observar todos esses exemplos na TV, no cinema, na música, por mais que eles estavam muito mais próximos do meu visual do que os exemplos anteriores, eu ainda me sentia completamente deslocado ao perceber algo que parecia nos colocar completamente desconectado um dos outros: o cabelo.
Nós sabemos como a população ainda trata os cabelos de homens pretos. Os cortes baixos e a falta de cabelos volumosos são resultados de uma hegemonia racista que dita que tal aparência é mais “apresentável”. Por mais que o cabelo da mulher preta ainda seja cercado de tabus sociais, as discussões dentro da nossa própria comunidade parecem estar muito mais avançadas em diversos quesitos. Hoje em dia eu poderia dizer que me sinto satisfeito em ser telespectador de uma revolução racial que está acontecendo, onde eu consigo notar uma variedade de fenótipos pretos, mas aquela auto identificação que não ocorreu na infância ainda tem seu lugar no meu subconsciente.
Ter o cabelo liso nunca me impediu de ser chamado de “beiçudo”, “moreninho” e afins, mas parece ter impedido, muitas vezes, de outros pretos verem em mim a diáspora africana que viam em si mesmo e em seus amigos próximos.
Faz-se notar que de forma alguma venho aqui defender algum tipo de campanha por mais pretos de pele clara ou algo do tipo. Questões como colorismo e passabilidade estudadas aos montes em nosso tempo já demonstram os diversos privilégios por eu ser homem e ter a aparência que tenho. Eu quero mesmo é ver mais pretos e pretas retintas em todos os ambientes os quais são considerados inacessíveis porque sei a importância politica que seus corpos possuem em um país que propositalmente promoveu políticas de embranquecimento da sua população. Políticas de embranquecimento é genocídio assistido pelo Estado.
O que de fato relato aqui é uma questão muito mais pessoal que talvez possa contribuir com outras pessoas na mesma situação.
Em épocas de embates sócio-políticos-raciais tão pulsantes é mais que necessário trazer à tona o valor intrínseco ligado ao black power. Inúmeras pessoas da nossa comunidade já sofreram e ainda sofrem, por apresentarem cabelos que desafiavam o status quo ditado pela branquitude. A simbologia do cabelo afro deve e faz todo sentido, ser colocada como símbolo de uma luta e de toda uma comunidade, mas não deve ser utilizada como único elemento de aferição de uma negritude. Ao não aferirem determinada raça apenas pelos cabelos de alguém é desenvolver um estereótipo imaginário na qual todas as pessoas pretas devem possuir a mesma aparência. É negar o poder do pan-africanismo e compreender o continente africano como uma hegemonia visual.
Não ter o mesmo cabelo a que automaticamente me atribuem já me impediu diversas vezes de me pronunciar como preto. A quebra desse processo tem sido uma caminhada diária, um processo de autoconhecimento, até o que dia que entenda por completo que posso ser rei, mesmo não tendo coroa.
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