Sobre uma nota: O Falecimento da Escuta

Pensar sobre a função e uso legítimo da língua escrita é também, de algum modo, considerar a deslegitimação, não apenas de linguagens outras, mas, também, do conhecimento expresso por vias distintas, especialmente, o corpo.

Por André Bispo* para o Portal Geledés 

Certamente, partindo desse possível lugar, o filósofo Vilém Flusser debruçou-se sobre o termo textolatria, articulando a ideia sobre a língua escrita, por sua excelência, ser validada como meio autêntico de registro de conhecimento, despotencializando a imagem fotográfica como documento visual. Não é por acaso que, ainda nos dias de hoje, é corriqueiro, imagem fotográfica ter o consentimento da escrita certificando o seu discurso imagético. Mesmo quando as palavras sejam “sem título”, ainda assim, alude a incapacidade de a própria imagem validar-se em sua totalidade, por si mesma.

No Brasil, o culto ao texto escrito é um hábito demasiadamente vivo no processo de difusão e documentação dos saberes sociocultural. Hoje, em algumas populações ameríndias, o modo de registrar o conhecimento cosmológico por via da língua do

outro, adota uma condição de resistência, uma vez que, estão submetidos em uma cultura linguística, trazida e assentada pelo sujeito europeu.

A colonização no Brasil, em sua gênese, precisou da relação mediada pela escuta a fim de alcançar a dimensão sobre a cultura e, especialmente, língua do outro (o não europeu) como modo de predomínio social, cultural e, principalmente, subjetivo. Desse modo, dentre diversas palavras que compõem a língua portuguesa brasileira, inúmeras, eram ameríndias e africanas. Entre outros, o termo kibáaba (do quicongo/quimbundo – significa: ama de leite, babá) falado por negros e negras, ambos, na condição de escravo (social e subjetivo) contribuiu para que a escuta do europeu deglutisse e, consequentemente, incorporasse essa palavra à sua língua materna. Em síntese, a escuta, umas das vias sensoriais na relação que o sujeito possui, não apenas com o ser outro, mas também, com o mundo, foi essencial para a formação da língua portuguesa do Brasil, marcando de certo modo, até os dias atuais, presenças de múltiplas sociedades, notadamente, de matrizes africanas e indígenas.

Certamente, palavras trazidas de angola, Nigéria, entre outras regiões, foram perdendo seus timbres e, sobretudo, semânticas, incorporando ressignificações, muitas, atribuindo usos pejorativos e vulgares. Assim como no caso da palavra Kisota (do quicongo, significa xoxota: clitóris, vulva), cujo termo é comum ser emudecido por desconforto ao ser falado. Com isso, diversos termos das línguas quicongo, quimbundo e iorubá foram colonizados, assumindo um novo lugar no vocabulário da língua portuguesa falada no Brasil. A fala de povos ameríndios e africanos foi silenciada e, o europeu, aos poucos, foi nutrindo socialmente o falecendo de sua escuta, revigorando sua voz, legitimando e transcrevendo-a no processo de composição de regras e condutas sociais por intermédio de sua palavra escrita.

Hoje, o distanciamento etimológico da palavra trazida por corpos escravizados (quindim, dengo, beleléu, banguela, moleque, entre outras), naturalizou-se de tal modo que, da luz à impressão de uma ausência da ancestralidade linguística ao sugerir para o falante, serem etimologicamente de origem da língua portuguesa oficializada no Brasil. É como se a escuta, falecida pelos colonos portugueses, ainda hoje, se mantém no cotidiano social, uma vez que, a fala dessas palavras negras, não é ouvida por grande parte dos brasileiros.

“O Falecimento da Escuta” do artista Jorge Lopes, potencialmente, tem como suporte o corpo como fala – atributo presente em culturas ágrafas, ou seja, o corpo dotado de funções multimídia, recebendo outras funções socioculturais. Esta performance propõe o pensar sobre o falecimento de uma escuta ontológica em pleno ato visual. O texto dessa linguagem é o próprio corpo. As vírgulas, palavras e semânticas são reveladas em cada ato corpóreo. Além do corpo, este trabalho possui dois elementos na condição de verbo-objeto: Terra e um Vaso de barro. Ambos desdobram suas funções de modo integrante à composição do “corpo-texto” exposto pelo artista – legitimando, portanto, a potência existente na própria performance como meio de operar e, expandir um conhecimento autêntico e social.

Assentado em um solo-espaço, a performance acontece, de modo que, discorre, minuciosamente sobre a tamanha invisibilidade do ser negro em diversas esferas socioculturais. O corpo em ato reverbera timbres ancestrais de palavras e vozes de corpos negros que não são escutados, visto que hoje, ainda há genocídios subjetivo e existencial que atingem intensamente a população negra de modo hostil, violento e racista. Em suma, O Falecimento da Escuta, proposto pelo artista Jorge Lopes, clama por escuta, cuja tônica, de certo modo, é “uma tentativa de diálogo tensional. O corpo em expansão e contração interagindo com a terra vertendo os ossos, os músculos e toda extensão da pele. Esta pele que está sempre em busca e exposta a fragilidades.”

 

 


 

2 – Nascido no interior de São Paulo. Atualmente, vive em Américo Brasiliense, lugar onde desenvolve pesquisas e trabalhos no campo da performance. “O Falecimento da Escuta”, compôs a 13ª edição da Mostra de Performance Arte Verbo, projeto articulado pela Galeria Vermelho em parceria com o Galpão VB.

3 – Menção do próprio artista sobre O Falecimento da Escuta em 06 de Agosto de 2017 por meio de conversas via e-mail.

 

*André Bispo é Graduado em Filosofia, é artista-educador com atuação em núcleo educativo de museus e, instituições culturais há 8 anos na cidade de São Paulo.

**

+ sobre o tema

Em entrevista, Nicki Minaj ataca Miley Cyrus novamente

Após desentendimento no VMA, Nicki Minaj criticou a postura...

‘Black Power’, de Stokely Carmichael, dá dimensão da consciência negra

A gritante ausência de uma tradução do livro "Black...

Ketellen de cinco anos morre baleada após troca de tiros em Realengo

Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes, de 5 anos, morreu...

para lembrar

Alice Hasters – Por que os brancos gostam de ser iguais

Alice Hasters, escritora afro-alemã, nascida em Colônia, em 1989,...

Cantora belo-horizontina é libertada, com tornozeleira eletrônica, após três dias presa

A cantora Marcella Eduarda Januária Carvalho, a Madu, de...

Madonna rebate críticas de racismo após publicar fotos de Mandela e Luther King

Madonna publicou na rede social imagens de personalidades como...
spot_imgspot_img

Belém e favela do Moinho, faces da gentrificação

O que uma região central de São Paulo, cruzada por linhas de trem, a favela do Moinho, tem a ver com a periferia de Belém, sede...

Alunos de escola particular de SP fazem protesto no Shopping Pátio Higienópolis contra abordagem racista de segurança do local

Alunos do Colégio Equipe, em Higienópolis, fizeram uma manifestação nesta quarta-feira (23), após adolescentes negros - estudantes da escola - denunciarem uma abordagem racista...

Uma elite que sabe muito, mas entende pouco

Em uma manhã qualquer, entre um brunch com avocado e uma conversa sobre alguma viagem à Europa, um membro de uma típica parcela da...
-+=