Políticos, personalidades, religiosos e acadêmicos suíços lançam uma iniciativa para avaliar o papel do país alpino na economia escravocrata nas Américas e pressionar para que haja alguma espécie de reparação às famílias das vítimas ou economias.
Por Jamil Chade, do UOL
No final do ano passado, foi formado o Comitê Suíço de Reparação da Escravatura (SCORES), defendendo que o país mergulhe para entender seu papel no tráfico de escravos e que, eventualmente negocie reparações, algo inédito na história da escravidão no continente americano.
A avaliação é de que, ainda que não tenha mar, a Suíça lucrou com a escravidão entre a África e as Américas entre os séculos XVI e XIX. Portanto, em seu manifesto, o grupo insiste que a escravidão nas colônias por parte da Europa “exige reconhecimento e reparação imaterial e material”.
Ainda que a posição oficial do governo seja de que a Suíça jamais foi uma potência colonial e de que não reconhece uma responsabilidade, o historiador Hans Fässler, que lidera o grupo, insiste que empresas, cidades e mercenários foram beneficiados pelo esquema. Segundo ele, soldados de cantões suíços chegaram a ser enviados ao Haiti para ajudar tropas francesas a reprimir a revolta dos escravos.
Inicialmente, o trabalho do grupo estará focado no tráfico de pessoas para o Caribe. Na região, já existem iniciativas para organizar dados e mobilizar esforços políticos para que haja uma negociação com os europeus. O objetivo é de que governos do Velho Continente façam um pagamento, diante do benefício que tiveram por conta do trabalho escravo em suas ex-colônias.
Contabilizando a dor
Fässler admite que é difícil calcular o sofrimento humano e as milhares de mortes ao longo de três séculos. Mas estima que a Suíça é responsável por entre 4% e 5% do total do envolvimento europeu na escravidão na região. Isso representaria centenas de milhares de escravos ao longo de mais de 200 anos.
“Sim, lucramos com isso”, admitiu o acadêmico, que tem se debruçado sobre o assunto durante mais de 15 anos. Segundo ele, tal participação foi importante para o desenvolvimento econômico da Suíça, principalmente no setor têxtil. O país também obteve seu know-how de comércio exterior justamente neste período.
Fässler não esconde que um dos desafios será traduzir tais dados em um valor em dinheiro. Certamente, o montante atingiria a marca de bilhões de dólares. Mas o primeiro passo é de que os países do Caribe tomem a iniciativa de entrar em contato com o governo suíço para iniciar um diálogo.
Enquanto aguardam por essa iniciativa, o assunto começa a movimentar os círculos políticos na Suíça. Neste ano, será criado bloco parlamentar para debater o papel da Suíça no tráfico de escravos.
Fässler traça um paralelo entre o debate que tomou conta da Suíça nos anos 90 sobre o papel do país no confisco do ouro dos judeus e a discussão que se abre a partir de agora. Sua avaliação, porém, é de que será muito mais fácil falar de questões de um passado remoto que de um dinheiro que, de certa forma, ainda mexia com sensibilidades.
Prova dessa maior aceitação, segundo ele, foi a vasta rede de apoiadores que sua iniciativa teve, em poucas semanas. Hoje, ela conta com mais de 80 personalidades, entre eles políticos e ex-líderes partidários, teólogos e religiosos, ex-juizes, artistas e o ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Europeu, Dick Marty.
Fiadores do tráfico
Se o primeiro passo do grupo é o de avaliar reparações aos países do Caribe, as pesquisas revelam que, longe dos portos de Lisboa, Luanda ou Salvador, eram banqueiros e empresários suíços que, de uma forma expressiva, financiavam o tráfico ao Brasil, para a América Latina e se enriqueciam com ele.
Hoje, parte dos prédios imponentes e palácios de cidades na Suíça fazem parte de um cenário idílico. Mas a realidade é que foram erguidos justamente com os lucros dessa atividade, na época legal.
Mesmo sem acesso ao mar, sem colônias e com uma democracia exemplar, a Suíça fez parte da economia da escravidão durante séculos.
Uma das formas de participação acontecia em um sistema de comércio triangular entre a Europa, África e Américas. Dos portos europeus saíam barcos carregados com produtos têxteis que, nas costas da África, eram trocados por seres humanos. Uma vez embarcados nos navios, os escravos eram dirigidos para as Américas e revendidos. Até que esses barcos voltassem para a Europa com o dinheiro, a expedição poderia durar até dois anos.
Justamente para financiar essa viagem e pagar pelo seguro da “mercadoria” é que os suíços entraram como parceiros nesse setor. Bancos e famílias como Burckhardt, Weiss, Favre ou Rivier, financiaram dezenas de expedições, numa atividade bastante arriscada. As ameaças eram de revoltas nos navios, de tempestades que poderiam gerar a “perda total” da embarcação e mesmo surtos de doenças durante a travessia, matando metade dos escravos.
Entre 1783 e 1790, por exemplo, os irmãos Weiss financiaram dez expedições em barcos que receberam nomes como “La Ville de Bâle (A cidade da Basiléia)”. As estimativas apontam que, entre 1773 e 1830, mais de cem expedições foram financiados pelos suíços, o que significou o transporte de milhares de africanos.
Os barcos patrocinados pelos suíços saíam em sua grande parte dos portos no Sul da França, como Nantes, e ainda levavam nomes como “Ville de Lausanne” ou “Helvética”.
Na cidade da Basiléia, por exemplo, os documentos revelam que o empresário Christophe Bourcard bancou mais de 20 expedições, com um total de 7 mil escravos entre 1766 e 1815. Em Zurique, Jean Conrad Hottinger comandou expedições com mil escravos.
Até hoje, uma rua no centro antigo de Genebra se chama “Chemin Suriname”, em referência aos investimentos que banqueiros locais possuíam na América do Sul.
“Bolha” no mercado
Não eram apenas banqueiros e empresários que apostariam no tráfico de pessoas para fazer fortunas. No dia 14 de abril de 1719, a República de Berna comprou 150 mil libras em ações na uma das maiores empresas do mundo no tráfico de escravos, a South Sea Company, de Londres. A iniciativa transformou Berna no maior acionista da companhia e o estado gastou quase 10% de suas reservas nesse investimento. Mas a aposta quase levou o cantão à falência.
Um estudo da London School of Economics (LSE) revelou que a estratégia de Berna chegou a chamar a atenção da monarquia britânica e, na época, foi considerada como uma das maiores iniciativas financeiras por parte de um Estado.
Berna, ao contrário de dezenas de governos pela Europa, vinha de dois séculos sem guerras, o que permitiu acumular um importante superávit. Mas precisava encontrar aplicações para o dinheiro que acumulava.
A empresa South Sea havia sido criada em 1711 e tinha como objetivo ajudar o governo de Londres a reduzir suas dívidas graças ao comércio. Mas a realidade é que o fluxo de bens com a América do Sul, seu principal objetivo, era praticamente inexistente. O continente sul-americano era dominado por espanhóis e portugueses, o que impedia concretizar o plano britânico.
Mesmo assim, as ações da empresa ganharam uma dimensão inusitada, alimentadas por pura especulação. O único comércio que de fato ocorria nas mãos da South Sea Company era o de escravos que, a partir de 1715, dominou as atividades da empresa. Mas que não justificava o salto no valor das ações.
A companhia iria deportar da África para as Américas cerca de 34 mil escravos, em 96 expedições. Centros de comercialização foram montados pela South Sea Company no México, Panamá, Colômbia, Cuba, Jamaica e Havana.
Em 1720, porém, a bolha iria estourar, gerando profundos impactos para a economia britânica. Uma CPI chegou a ser montada pelo Parlamento Britânico, que confiscou os ativos de empresários do setor e ainda puniu políticos que teriam se beneficiado de forma ilegal.
As contas de Berna sairiam ilesas em um primeiro momento. Em junho de 1720, um dos bancos alertaria para os riscos do rápido incremento nos valores das ações, num sinal claro de que o aumento não era baseado em um maior lucro da empresa, mas sim por conta de especulação.
Conservadores, os representantes de Berna decidiram no dia 22 de junho de 1720 vender todas suas ações na South Sea Company, obtendo um lucro de 660% em comparação ao que haviam aplicado um ano antes. Nos dois meses seguintes, as ações desabariam, causando o primeiro estouro da bolha no sistema capitalista.
Mas o impacto para Berna não havia terminado. O crash da bolsa de Londres levou à falência dos dois principais bancos de Berna, o Malacrida & Cie e o Samuel Muller & Cie. O caos financeiro gerou uma crise política e obrigou a República de Berna a redesenhar sua constituição.
Os lucros que Berna havia obtido ao vender suas ações antes do crash, segundo o estudo da LSE, foram suprimidos diante das perdas com seus agentes financeiros e, por 30 anos, nenhum novo banco foi aberto na cidade suíça.