Para a arquiteta e urbanista carioca Tainá de Paula, co-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil do Rio de Janeiro (IAB-RJ), é possível pensar um novo modelo urbano, produtivo e social, autenticamente latino-americano e antirracista. Esses são elementos de uma cidade pós-capitalista, como ela define, com espaços mais acolhedores, verdes, um transporte público melhor, um local onde a produção orgânica e a renda mínima sejam direitos.
Se o projeto parece distante do que vivemos, a boa notícia é que Tainá vê o momento em aberto. “A pandemia deu um golpe de Kill Bill no capitalismo”, diz, em referência a uma pensata do filósofo esloveno Slavoj Zizek.
A arquiteta vai abordar temas como esses em sua coluna que estreia nesta sexta-feira (31) em Ecoa. “Eu vou escrever sobre os novos modelos de cidade em disputa. Sobre o lugar dos negros nas cidades, sobre um novo modelo de desenvolvimento e independência do Brasil. Sobre a descolonialidade das cidades”, explica ela.
Duas cidades
Especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz e mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tainá já desenhou projetos de urbanização para habitação popular e favelas no Rio e em São Paulo. Já promoveu assistência técnica para movimento como o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e União de Moradia Popular (UMP). Trabalhou pela regulação fundiária de favelas fluminenses na Fundação Bento Rubião.
Na infância, teve pouco acesso a equipamentos culturais como cinemas ou grandes museus. No Colégio Pedro II, onde foi aprovada por concurso, começou a desenhar e a se interessar por arquitetura nas aulas de educação artística. O trajeto de duas horas para chegar até a sala de aula, bem como a cidade que passou a conhecer, foram estímulos para a mudança da Praça Seca, bairro na zona oeste do Rio, ao centro.
“Vi o mundo do Centro Cultural Banco do Brasil, da Cinelândia. Lembro de espaços muito amplos e qualificados quando comparados com a minha realidade”, recorda-se. Já na universidade, Tainá se dedicou a pensar a arquitetura a partir do combate às desigualdades sociais e raciais, e também a partir das favelas do Rio de Janeiro.
A urbanista vê que as cidades brasileiras foram pensadas sob uma lógica racista, fruto de herança da escravidão que as repartiu entre centro, destinado às classes ricas e à produção econômica, e periferias, lar da classe trabalhadora que ainda é compreendida como uma massa escravizada.
“Por isso o ônibus é ruim: para nossa sociedade, ele não transporta humanos. Por isso esses modais, instrumentos de locomoção e de transporte urbano, bebem da estruturação do racismo e da desigualdade social entranhados em nossa sociedade”, coloca. “Estamos em um processo de humanização do pobre e do preto neste país.”
Menos tempo no busão
Para Tainá, é preciso diminuir o tempo de trajeto no transporte coletivo, obrigar as empresas que operam linhas de transporte urbano a investir em energia verde e conectá-las com meios de transporte sustentáveis.
“Falamos de uma forma quase pueril, burguesa, sobre mobilidade ativa. Costuma ser sobre o sujeito que já está na zona sul [do Rio] e pode pegar uma bicicleta para ir trabalhar no centro. Quanto mais preto e periférico você é, menos direito à cidade você tem”, diz.
Falo da perspectiva de [ser realidade] um sujeito pegar um ônibus com ar condicionado, um bom trem, metrô de superfície ou subterrâneo para chegar em dez minutos a uma estação e, daí, pegar uma bicicleta elétrica
Tainá de Paula, arquiteta e urbanista
A nova colunista de Ecoa crê que o transporte urbano é eixo central da mudança das cidades. O encurtamento de distâncias daria tempo para cuidar melhor da família, da casa e da alimentação — cultivar uma horta comunitária, por exemplo —, além de diminuir as desigualdades territoriais. Seria, ainda, importante para ajudar a evitar o contágio pelo novo coronavírus, e até mesmo por vírus futuros, já que a contaminação se agrava entre quem não pode parar de trabalhar e tem de se deslocar mais pela cidade.
Mais tempo, reflexão e comunidade
Para Tainá, um segundo passo para a transformação urbana e melhor qualidade de vida das pessoas envolve mudar a relação entre o trabalho e a produção de riqueza. “Conectamos o desenvolvimento à produção, mas todas as cidades pararam e a gente viu que dá para oferecer uma renda básica para todo mundo, automatizar e diminuir o tempo no trabalho”, diz ela.
As cidades pós-capitalistas nos dariam mais tempo e permitiriam nos dedicar a uma discussão intelectual, não produtiva, e às redes sociais de bairro, fundamentais para a existência humana — e que deixamos de fazer
Tainá de Paula, arquiteta e urbanista
O caminho não é fácil. Tainá diz que urbanistas brasileiros reproduziram modelos metropolitanos europeus nos quais é preciso se deslocar por longas distâncias para acessar empregos e serviços. A criação de conjuntos habitacionais não solucionou a desigualdade racial: apresentados como uma alternativa ao problema de moradia da população pobre nas grandes cidades, eles atendem ao pobre formalizado, aquele que tem um emprego, CPF e conta corrente. Nas favelas e periferias, no entanto, há muita gente sem isso — e a situação se agrava entre a população negra. “Fingimos que as cidades dos pretos não existem”, diz ela.
“Se o modelo o ocidental não deu certo, precisamos pensar em outra matrizes intelectuais. É preciso linhas de ônibus na favela. Equipamentos públicos, como um Poupatempo no Complexo do Alemão (RJ). Por que o prefeito não despacha da favela? Por que o dinheiro gerado na favela é usado em outras áreas da cidade, e não é drenado para a própria favela? Precisamos pensar a favela como uma parte central da cidade, não como uma agenda apêndice”, conclui.