‘Tem dias em que sinto vergonha da minha cor’

Nós brancos precisamos desconstruir o racismo institucional que nos cerca e entender que ele é um problema social atual, não somente uma herança histórica cometida por nossos ancestrais

“A verdade é que de dentro da minha bolha branca eu nunca me interessei em ler ou entender qualquer questão relacionada ao negro no Brasil”, diz a jornalista Andrea Assef Foto: Arte de Lari Arantes

Tem dias em que eu sinto vergonha da minha cor. Geralmente, isso acontece nas noites de quinta, quando saio da minha aula no Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (CEA-USP), depois de ouvir professores como o antropólogo Kabengele Munanga, um dos maiores especialistas na questão racial no Brasil e figura fundamental no debate nacional em defesa da implantação das cotas e ações afirmativas. Com ele, aprendi que o racismo brasileiro é o crime perfeito: “Além de matar de verdade, fisicamente, ele mata pelo silêncio: tanto a consciência das vítimas como a da sociedade como um todo, dos brancos e negros”.

Sinto vergonha também da minha ignorância. E não adianta culpar apenas a educação eurocêntrica que não me apresentou a figuras como Luísa Mahin, que participou da Revolta dos Malês (Salvador, 1835) e foi mãe do poeta e advogado Luiz Gama, de quem eu também sabia tão pouco. A verdade é que de dentro da minha bolha branca eu nunca me interessei em ler ou entender qualquer questão relacionada ao negro no Brasil. E quase passo por esta vida sem conhecer a fantástica trajetória de Luiz Gama, um dos maiores líderes do Abolicionismo no país, que só foi reconhecido no ano passado, com a Lei 13.629, que o declarou Patrono da Abolição da escravidão. Em 1850, Gama tentou frequentar o curso da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas foi impedido por ser negro. Então ele assistiu às aulas como ouvinte e se transformou no grande advogado que libertou mais de 500 negros escravizados.

Agora, vergonha mesmo, de doer na alma, eu sinto quando, no meio de uma aula em que o professor discorre sobre a questão racial, o tema acaba sendo contextualizado por depoimentos de situações perversas de racismo que meus colegas da classe – professoras, advogados, psicólogas – vivenciaram, às vezes a caminho da USP! Isso mesmo! Não é lá longe, na matéria do jornal, no post do face. Eles estão sentados ao meu lado, trocando anotações, passando dicas de livros e filmes, dividindo seus saberes comigo.

Também me incomoda o meu privilégio de mulher branca. Privilégios. Simbólicos e materiais, como aponta a pesquisadora Lia Vainer Schucman especializada no tema branquitude: “O branco não precisa responder pela sua raça”, explica. O branco já nasce com vantagem. Mesmo de forma inconsciente a gente legitima o racismo todos os dias. Como disse a artista portuguesa Grada Kilomba em entrevista concedida à filósofa Djamila Ribeiro, o racismo é uma problemática branca. Fomos nós, brancos, que nos definimos como a norma. “As pessoas brancas não se vêem como brancas, se vêem como pessoas”, disse Grada.

E isso só começa a mudar quando nós, brancos, passarmos a desconstruir o racismo institucional que nos cerca e entender que ele é um problema social atualíssimo e não uma herança histórica cometida por nossos ancestrais e, portanto, “não temos culpa, não fomos nós, não temos nada a ver com isso”. Oi??

Nessa hora, eu lembro que até pouco tempo atrás eu também não tinha a menor ideia da malha racista que foi tecida e na qual vivemos confortavelmente. Não imaginava o desafio que é ser uma mulher negra no Brasil. Nunca tinha ouvido falar do Geledés Instituto da Mulher Negra, primeira organização negra e feminista independente de São Paulo, que completou 30 anos em 2018. Fundado e dirigido pela maravilhosa Sueli Carneiro, uma das mais importantes filósofas, ativistas e autoras do feminismo negro no Brasil, o Geledés (que significa uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades tradicionais yorubás) possui o único programa brasileiro de orientação na área de saúde específico para mulheres negras. Semanalmente, mais de 30 mulheres são atendidas por psicólogos e assistentes sociais e participam de palestras sobre sexualidade, contracepção, saúde física e mental.

E, se hoje estou em pleno processo de desconstrução como mulher branca, devo isso a duas grandes amigas que me pegaram pelas mãos e caminharam comigo – e ainda caminham- pelas alamedas e encostas do universo negro: Raphaella Martins, publicitária com 15 anos de experiência e uma incrível habilidade de provocar mudanças por onde passa, e Patrícia Santos, sócia-fundadora da EmpregueAfro, uma consultoria em Recursos Humanos focada na diversidade étnico-racial, que tem como missão revelar talentos negros ainda tão ofuscados pelo racismo. Foram infinitas conversas, cervejas, risadas e lágrimas para chegar até aqui. E ainda tem muito chão pela frente.

Termino este texto antecipando minhas desculpas aos meus professores do CEA da USP pelos erros que possivelmente cometi na minha ainda vasta ignorância sobre o assunto. Quis apenas dividir o privilégio que é tirar a venda branca dos olhos.

Andrea Assef é Diretora de Comunicação e Marketing da J. Walter Thompson e uma das idealizadoras do Programa de Equidade Racial 20/20, o primeiro da publicidade brasileira.

 

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