To be or no to be idiota?

Estamos vivendo em mundo de idiotas? As pessoas ao se distanciarem da política, do exercício da cidadania e se profundarem na cultura de massa sucumbem a condição de escravos, tal como na Grécia antiga? Ou será que, apesar dessas constatações as pessoas continuam produtoras de sentidos e significados, portanto, em algum nível ativas politicamente? “To be or no to be idiota” é um texto que convida você, amigo leitor, a refletir sobre essas possíveis condições da contemporaneidade.

POR MARCELO RIBEIRO, do Obvious

A emblemática frase shakespeareana “ser ou não ser: eis a questão” parece anunciar um dos caros dilemas da contemporaneidade. Sem querer entrar nos virtuosos caminhos literários sobre o assunto, apenas abduzo esta frase para compor uma importante discussão nesta nossa quase era de aquários: as gentes têm se tornado cada vez mais idiotas por conta da cultura de massas e recusa à dimensão política? Ou mesmo assim sempre um produtor e criador de sentidos?

Idiota, para o senso comum, remete, em geral, a ideia de alguém que não tem senso crítico, ou que que faz besteiras, se pondo no ridículo. Essa ideia pejorativa do idiota tem vinculação com a tradição psiquiátrica, que a utilizava para classificar pessoas com um menor grau de desenvolvimento intelectual.

Não obstante, a palavra idiota tem sua origem no grego antigo idiótes, que significava “homem privado da vida pública, que não vive a política, que não participa das coisas públicas”. Sobre este aspecto, Mario Sergio Cortella e Renato Janine Ribeiro escreveram um potente livro, “Política para não ser idiota”, justamente para refletir e criticar uma postura disseminada de que a política é algo que deve ser evitado, que não deve ser discutida, que é uma perda de tempo e uma coisa chata. Essa postura guarda uma axiomática inversão da visão grega. Enquanto o homem livre era aquele que participava ativamente da polis, da vida em sociedade, do público, porque vivia a política, o escravizado estava da vida privada, vivia cerceado ao mundo privado, era um idiota porque não tinha acesso a vida política.

Nesse sentido, para os gregos, cidadania (aquele que pertence a cidade) dizia respeito aquele que vivia a política. Portanto, o cidadão construía os direitos e deveres, enquanto o idiota estava a margem desse processo. Esse sentido de cidadania é totalmente diferente da sua versão moderna que está vinculada ao poder de consumo, ao acesso aos bens de consumo. Ser cidadão hoje não tem muito a ver com o sujeito consumidor que, via de regra, está distanciado da dimensão política.

Essa inversão coloca a pecha de idiota a todo aquele que se interessa pelo bem público, que busca a dimensão política. Talvez algo próximo ao que Dostoievski compôs em seu livro « O idiota », que conta a história de um homem com epilepsia, que era bom e humanista e, devido as suas atitudes de grande compaixão, era visto pelos outros como um idiota. Assim, para os dias de hoje, não ser idiota é justamente aquele que se ocupa exclusivamente com a vida privada, que dá as costas a dimensão política e, consequentemente, não quer participar da vida pública.

Trazendo uma outra perspectiva sobre a questão de ser ou não ser idiota, o pensador italiano, Umberto Eco, declarou que as redes sociais deram voz a legião de idiotas, que antes estavam reservados a espaços sem grandes repercussões. É provável que o falecido intelectual italiano, muito sensível a temática da comunicação humana, tivesse criticando a qualidade das informações e sua propagação em escala global graças as novas tecnologias digitais. Para Eco, a cultura de massa ganhou, com as novas tecnologias, uma proporção extraordinária e que não veio acompanhada com a qualidade, de modo que as pessoas replicam, reproduzem, copiam e agem sem reflexão.

Particularmente não discordo dessa aguçada critica de Eco, mas também é relevante lembrar da valiosa lição do não menos importante sociólogo americano, Harold Garfinkel, que rompe com a tradição sociológica (a grande sociologia), de que o sujeito (social) estaria complemente passivo as determinações sociais. Para Garfinkel o sujeito não é um idiota social. O que o sociólogo estava querendo dizer é que as pessoas, em suas vidas cotidianas, mesmo impactadas pelas grandes influências sociais, seriam produtoras de sentidos e significados, ou seja, constroem realidades e não apenas as reproduzem.

To be or no to be idiota tende a uma dupla abordagem, pelo menos no meu entendimento. Se por um lado é importante assumir a perspectiva de Garfinkel, de que as pessoas não só reproduzem a realidade como também são ativas, ou seja, produtoras de sentidos e significados nesse processo, por outro, parece ser inegável que as pessoas nutrem uma postura de se esquivarem de uma vida mais crítica e participativa do ponto de vista público e político. Bem verdade que, para ser ativo no processo de construção da realidade (produção de sentido e significado) não é necessário, em absoluto, a inserção na vida pública e na dimensão política. Entretanto, parece ser nesse tipo de vida (pública) e dimensão (política) que o sujeito encontra sua maior potência enquanto ativo e criativo.

A cultura de massa com seu besteirol como estilo de vida e a vida para o entretenimento, o individualismo, a preocupação exclusiva em uma existência de consumos e ostentações, as replicações não refletidas de concepções de intolerância e o desdém com o outro e com o que virá, são algumas marcas de que o idiota (tanto no sentido antigo grego, quanto na perspectiva de Umberto Eco) é uma forte figura da contemporaneidade.

Por outro lado, mesmo sendo uma forte figura, o idiota tem potência criativo e pode retomar uma postura crítica, reflexiva, sensível ao outro e participativa do ponto de vista político (deixando de ser, portanto, idiota no sentido grego). Entendo que negar a capacidade e a potência desse sujeito é tão prejudicial quanto não enxergar o flagrante processo de idiotização que a humanidade vive.

Idiota: to be or no to be?

CORTELLA, Maria Sérgio e Renato Janine, RIBEIRO. Política para não ser idiota. Papirus / 7 Mares: São Paulo, 2010. DOSTOIEVSKI, Fiodor. O idiota. Editora 34: São Paulo, 2010. GARFINKEL, Harold. Studies In Ethnomethodology. John Wiley Professio: Nova Jersey , EUA, 1991

 

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