São um atrevimento e um privilégio negro a memória e as lutas do presente que expressam a experiência de existência e resistência coletivista, inclusiva e solidária dos quilombos no Brasil. Quilombo é tanto o módulo de resistência que dá musculatura ao movimento de rebeldia permanente e organizada da quilombagem, como diz Clovis Moura no livro “História do Negro Brasileiro”, como, também, território político de sociabilidade disruptiva, diverso e complexo, nutrido por ética, afetividade, justiça e equidade, alicerçado em formulações pragmáticas de bem-viver e responsabilidade comunitária.
Tanto libertário e altivo quanto habilidoso politicamente para seguir em paralelo ao paradigma dominante, o quilombo sustenta a preservação do conjunto de saberes e fazeres comunitários ancestrais enquanto incide engenhosamente no Estado, compelindo as instituições a um deslocamento em direção ao reconhecimento de humanidade e cidadania dos que estão fora da métrica da universalidade.
Conflitos e contradições existem nos quilombos, pois a similitude comunitária não é sinônimo de uniformidade: há sólida compreensão da pluralidade de indivíduos e de coletividades. Os conflitos presentes em toda composição social heterogênea proporcionam crescimento do quilombo, pela afirmação de outras formas organizativas de cultura política, que aproveitam o conjunto tenaz de potencialidades reunidas. O aprofundamento das relações nos desafiará a permanecer e a seguir até onde deveríamos estar, não fosse pelo racismo. A gente se amplia em movimento, se desenvolve, atrita e repactua quando necessário.
O quilombo é um lugar para não esquecer que as opressões que sofremos na base da categorização social são frentes de lutas inseparáveis e que nossas jornadas, ainda assim, podem ser vibrantes e emancipatórias, se enquanto indivíduos e coletividades nos comprometermos a sermos “acendedores de sóis” uns dos outros e do nosso povo, como ensina Aza Njeri.
A iniciativa Quilombo nos Parlamentos é uma caixa amplificadora, melhor dizendo, um grande paredão para expandir a participação, o alcance e o poder decisório de nossas vozes, vozes negras, na vida política de nossas cidades, estados e país.
O voto antirracista é o voto que muda as regras do jogo e mexe com a flagrante e constrangedora predestinação artificial de candidaturas que representam o poder econômico, branco, masculino, cisgênero, heteronormativo, conservador, religioso e territorializado.
O voto antirracista é o voto em lideranças e representantes dos movimentos negros cuja tradição nos trouxe até aqui vivas, como destacaram Vilma Reis, candidata a deputada federal (PT-BA) e Douglas Belchior, candidato a deputado federal (PT-SP), no encerramento do lançamento da iniciativa Quilombo nos Parlamentos, quando foram apresentadas mais de cem candidaturas negras de todo o país.
É possível contribuir para a mudança da fotografia do poder, como propôs Milton Santos, o que implica a própria reorganização do poder e transformação compulsória dos espaços de poder pela presença de pessoas negras ativistas e comprometidas com pautas afirmativas, especialmente mulheres negras, que seguem escandalosamente sub-representadas em todos os parlamentos.
Por meio de iniciativas dos movimentos negros e de mulheres negras, que vêm estimulando e subsidiando intelectual e materialmente novas metodologias e práticas políticas, será possível uma outra cultura política, marcada por coletivismo e horizontalidade, suprapartidária, e comprometida precipuamente com a equidade racial e de gênero. Em um país submerso em ódio racial e autoritarismo, oxigenamos a disputa eleitoral.
Por um Brasil livre, justo e solidário, por uma democracia que respeite todo o povo brasileiro, como um quilombo, nós faremos Palmares de novo. Para isso, precisamos de oportunidades. Sem aquilombamento político e uma bancada dirigida pelos movimentos sociais negros e de mulheres negras, continuaremos a ter poucas chances. A maré vai subir e vamos subir com ela!
Maíra Vida
Advogada, professora, integrante da Coalizão Negra por Direitos, cofundadora do Aganju (Afrogabinete de Articulação Institucional e Jurídica) e coordenadora do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela/Sepromi