Minha filha e meu neto dormem no quarto ao lado, enquanto eu choro por Rebeca Andrade. Lembro meus descendentes, porque, na primeira entrevista (ao colega Carlos Gil, da TV Globo) após a conquista inédita para a ginástica artística brasileira, prata no peito, a medalhista reverenciou as atletas que pavimentaram o caminho da modalidade no Brasil, a família, os amigos, a equipe, a psicóloga. E a mãe, dona Rosa Santos, empregada doméstica, que criou sozinha sete filhos como tantas matriarcas brasileiras: “Antes de sair da barriga da minha mãe eu era grata”. O agradecimento de uma jovem negra pela própria vida, antes mesmo de vir à luz, guarda o sentido da existência na diáspora. Não é trivial para uma negra parir um filho no Brasil, país forjado na escravidão e, ainda hoje, habituado a explorar, depreciar, criminalizar, encarcerar, exterminar corpos que, com racismo, com tudo, representam 56% da população, maioria sub-representada. Sou, por isso, devota do útero das mulheres negras, senhoras do ventre do mundo, como nos ensinou o Salgueiro em mais de um carnaval.
A medalha de prata de Rebeca Andrade coroa um processo histórico que vem também de Tóquio, na Olimpíada de 1964. Foi na capital japonesa que dona Aída dos Santos, também negra, sem apoio, sem uniforme oficial, com traje adaptado, conquistou o quarto lugar no salto com vara. Foi a única mulher numa delegação com 67 homens. Não bastasse, nos brindou com a filha Valeskinha (Valeska dos Santos Menezes), ouro no volêi em Pequim 2008. Cinquenta e sete anos se passaram até Rebeca Andrade se tornar a primeira brasileira a conquistar uma medalha olímpica na ginástica artística. Nunca escondeu a inspiração em Daiane dos Santos, igualmente negra, dona do primeiro ouro do Brasil num campeonato mundial, na Califórnia (EUA), em 2003. Desde aquele agosto, o planeta sabe que o duplo twist carpado tem nome e sobrenome.
Daiane dos Santos costumava se apresentar com tambores ressoando. Produziu inesquecíveis exibições tendo como trilha o choro “Brasileirinho”, clássico de Waldir Azevedo lançado em 1949. Rebeca Andrade conquistou a primeira medalha olímpica com um medley de “Tocata e fuga em ré menor”, de Johann Sebastian Bach, e “Baile de favela”, pura antropofagia brasileira. O sucesso de MC João, tocado até na campanha de Joe Biden à Casa Branca, em 2020, com o sobrenome do agora presidente dos EUA no verso marcante, é legítimo funk, gênero musical forjado na periferia, nas favelas, nos grotões do Brasil.
Daiane foi inspiração para Rebeca, que na cidade natal era chamada de “Daianinha de Guarulhos”. São duas mulheres que valorizam as origens e, juntas, tornaram-se referência para muitas meninas, sobretudo negras, como é também Simone Biles — a supercampeã agora ainda maior por trocar o Olimpo pela humanidade ao priorizar, em vez da expectativa alheia, a saúde mental, a alegria, a vida, enfim. Poucas vezes a frase “uma sobe e puxa a outra”, síntese do feminismo negro, fez tanto sentido. E tudo isso acontecendo no Julho das Pretas, mês em que se comemora, no dia 25, o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, no Brasil dedicado a Tereza de Benguela, rainha do Quilombo do Quariterê, hoje território de Mato Grosso.
A prosperidade da gente preta — e não só no esporte — só se materializa coletivamente num país de portas estreitas para afrodescendentes, sobretudo mulheres. O país que amanheceu de olhos vidrados na tela da TV em torcida por Rebeca Andrade é a nação em que o chefe de Estado se reúne sem pudor, sorriso estampado na cara, com líder de partido neonazista alemão, descendente de figura do alto escalão do governo de Adolf Hitler. A criminalização da cultura negra é real para o funk em pleno século XXI, como foi para o samba na virada do XX.
Anteontem, Paulo “Galo” Lima, líder dos motofretistas em São Paulo, e sua companheira, Géssica Barbosa, mãe de uma menina de 3 anos, foram presos sob acusação de incendiarem a estátua de Manuel de Borba Gato, em São Paulo. Segue de pé o monumento de dez metros de altura e 20 toneladas de peso ao infame bandeirante escravocrata, assassino e expropriador das riquezas da terra no século XVII, hoje encarnado em grileiros e mineradores, que, sob as bênçãos do poder constituído, oprimem povos nativos, devastam nossas florestas, pilham nosso território.
Sorte nossa é que, do mesmo solo, floresce Rebeca Andrade, a jovem negra que ontem nos restituiu a prata. Puro ouro. Como costuma dizer o historiador Luiz Antonio Simas, essa brasilidade há de nos salvar do Brasil.