Violência obstétrica: outra face da violência contra as mulheres

As redes sociais possibilitaram que mulheres de lugares diferentes e níveis sociais distintos compartilhassem experiências de humilhação, maltrato e violência vivida no meio médico-hospitalar em uma etapa particular de suas vidas: o parto. Compartilharam experiências de desrespeito, de procedimentos realizados sem anestesia ou sem seu consentimento, de uso de técnicas agressivas, de falta de intimidades e confidencialidade, entre várias outras. Identificaram suas vivências como maltrato ou violência; contudo o que viveram não tinha um nome. Nos últimos anos, essa experiência começou a ser nomeada, especialmente por movimentos de mulheres na América Latina: violência obstétrica.

Em geral, considera-se violência obstétrica aquela sofrida por mulheres durante a atenção ao parto nos centros de saúde. Essa violência é objeto de questionamentos. Ainda não há um consenso internacional acerca do termo para nomear certas condutas violentas na atenção ao parto, e se questiona se referidas condutas poderiam configurar um tipo de violência.

Essas discussões são parte de um debate mais amplio, emergente e cada vez mais visível na medida em que se estudam certas práticas relacionadas com o parto como violência e analisa-se se violam direitos humanos e fundamentais. Um passo importante na visibilização e no reconhecimento da violência obstétrica foi dado em 2019. A relatora especial das Nações Unidas sobre a violência contra as mulheres publicou um documento no qual aborda diferentes tipos de violência nos serviços de saúde reprodutiva, entre estas a violência obstétrica.

O recente caso S.F.M. vs. Espanha (2020), decidido pelo Comité para a eliminação da discriminação contra a mulher, seguramente contribuirá para aprofundar esse debate. Trata-se do primeiro caso decidido em uma jurisdição internacional que reconhece a responsabilidade de um Estado por violar direitos humanos por atos configurados como violência obstétrica, o que dá uma maior visibilidade à violência sofrida por mulheres durante o parto.

A demandante acusou Espanha por uma série de intervenções realizadas durante seu parto, todas desnecessárias e sem prestar-lhe informações nem contar com seu consentimento, que afetaram negativamente sua saúde física e mental e a de seu bebê. Identificou esses atos como violência obstétrica e afirmou que se deveram a uma discriminação estrutural e sistemática que expressa estereótipos de género sobre a sexualidade, a maternidade e o parto, e que esses estereótipos se perpetuaram nas instancias administrativas e judiciais. Estes atos teriam violado seus direitos a um serviço de saúde de qualidade e livre de discriminação e violência, à autonomia pessoal e à integridade física e moral.

Neste caso, o Comité indicou que ante a alegada violação de direitos pela adoção de decisões judiciais, sua tarefa é analisar referidas decisões à luz da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW) e determinar se as autoridades espanholas respeitaram suas obrigações previstas em referida Convenção. O Comitê analisou dois aspectos: em primeiro lugar, se Espanha atuou com devida diligência nos procedimentos administrativos e judiciais que se seguiram aos atos denunciados pela autora e, em segundo lugar, se atuou com a diligencia devida para eliminar os estereótipos de género (parágrafo 7.4).

Com relação ao primeiro aspecto, após analisar a informação e a documentação aportada pelas partes, o Comité afirmou que as autoridades não analisaram de forma exaustiva as provas apresentadas pela autora. (parágrafo 7.4)

Com relação ao segundo aspecto, destacou que “a aplicação de estereótipos de género afeta o direito da mulher a ser protegida contra a violência de género, no presente caso a violência obstétrica, e que as autoridades encarregadas de analisar a responsabilidade por tais atos devem exercer uma cautela especial para não reproduzir estereótipos.” Segundo o Comité, em virtude do desenvolvimento normal da gravidez da autora e de que não havia emergência, havia alternativas al trato que recebeu desde o momento de seu ingresso no hospital, em que foi submetida a várias intervenções sem receber nenhuma explicação a respeito e sem que lhe permitissem expressar sua opinião. Além disso, o Comitê afirmou que as autoridades administrativas e judiciais do Estado aplicaram noções estereotipadas e, por tanto, discriminatórias ao assumir que é o médico quem decide realizar ou não a episiotomia; ao afirmar sem proporcionar explicações que era “perfeitamente compreensível” que o pai não estivesse presente durante o parto; ao assumir que as lesões psicológicas sofridas pela autora era uma questão de “mera percepção”, expressando, não obstante, empatia em relação ao padre por haver estado privado de relações sexuais coitais durante dois anos (parágrafo 7.8).

O Comité reconheceu a responsabilidade do Estado espanhol por violar diversos artigos da CEDAW. Recomendou que Espanha repare a vítima e tome uma série de medidas, como assegurar o direito das mulheres a uma maternidade sem risco e seu acesso a uma atenção obstétrica adequada; realizar estudos sobre a violência obstétrica, proporcionar capacitação profissional adequada, entre outras.

Esta decisão é importante por vários motivos. Em primeiro lugar, reconhece que certas condutas realizadas durante a atenção ao parto, em que há um abuso de medicação e de intervenção médica, configuram formas de violência; e que as mulheres gestantes devem poder tomar decisões autônomas em relação a sua gravidez.

Em segundo lugar, reconhece também que persistem costumes e práticas estereotipadas por parte de autoridades administrativas e judiciais e que são discriminatórias. Apesar de que, em sua decisão, o Comitê se refere genericamente a estereótipos de gênero que afetam às mulheres, algumas autoras já destacaram alguns dos estereótipos mais frequentes no âmbito da saúde reprodutiva, como o de que as mulheres estão subordinadas a seus maridos (ou a outra figura masculina relevante); que as mulheres são emocionais e incapazes de tomar decisões relevantes sobre aspectos reprodutivos; que desejam acima de tudo ser mães e estão dispostas a fazer grandes sacrifícios por sua maternidade, etc.

Em terceiro lugar, a decisão do Comité é coerente com a posição da Relatora especial da ONU sobre a violência contra a mulher e do Conselho de Europa, e permite avançar no reconhecimento de práticas como esta como uma forma de violência por razoes de gênero que discrimina as mulheres gestantes.

Em quarto lugar, esta decisão permite chamar a atenção das autoridades para a importância da formação na abordagem dos estereótipos de gênero na atenção médica e para criar políticas de saúde que não discriminem as mulheres e reconheçam sua capacidade de tomar decisões livre e informadas sobre sua gravidez e parto

 

Leia Também: 

Violência obstétrica e o viés racial

 

 

Emanuela Cardoso Onofre de Alencar

Pesquisadora, docente no Instituto Universitario de Estudios de la Mujer da
Universidad Autónoma de Madrid – IUEM-UAM.


 

* Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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