A Julgar pelas evidências, não fica só nisso

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.

Por Edson Lopes Cardoso Do Brado Negro

Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Cabe ainda alguma reflexão sobre os episódios envolvendo a reforma ministerial da semana passada. O sacolejo tem, afinal, quais implicações para a luta política contra racismo e sexismo? Quais os efeitos dessas alterações na capacidade da Seppir de propor ações de governo comprometidas com a superação de desigualdades raciais?

A reação discreta à reforma que aglutinou três secretarias em um ministério, sabemos todos, está contaminada por um cenário que condiciona o ativismo a posicionar-se, com maior ou menor alarde, na defesa do governo Dilma, em razão do avanço conservador que articula abertamente um golpe de Estado.

Mas há ressentimento e frustração em muitos ambientes de militância, algum constrangimento e mesmo apreensão de que uma saída conservadora do momento atual já se beneficiaria do recuo que representa a aglutinação das secretarias. O espelho trincou ou embaçou.

Há sinais de que a solução encontrada para contornar a oposição à permanência das secretarias pode não ser duradoura. Basta ver o que já está acontecendo no país. A tendência à aglutinação e arranjos que, comprovadamente, neutralizam iniciativas já é forte nos estados. Aqui em Brasília, também o governo do DF está às voltas com pressões para pôr fim ao modelo agora adotado no governo federal. Eu sou você amanhã?

Impressiona, por isso mesmo, a disposição de alguns setores para a comemoração, inclusive distribuindo notas à imprensa. Vá lá saber o que esse pessoal está comemorando. Mas, como disse o poeta, há São João onde o festejam.

O novo arranjo ministerial é obviamente resultado de escolhas políticas, motivadas por necessidades escancaradas nos meios de comunicação. A reforma expressa, por isso mesmo, os interesses das forças que compõem o governo de coalizão. A presidenta Dilma foi franca e transparente na solenidade que anunciou a nova composição ministerial, dizendo que seu governo buscava apoio no Congresso e a reforma fazia parte desse contexto.

Mas devemos ressaltar que não se brigava apenas por cargos dentro da coalizão. Travam-se aí também importantes lutas políticas e ideológicas e as três secretarias sempre agravaram tensões dentro e fora de partidos da base, os quais em diversas ocasiões manifestaram seu incômodo com a existência delas.

A situação política se agravou? Cogita-se de imediato uma fórmula para sossegar os ânimos exaltados. Ainda que de forma especulativa, essas secretarias sempre foram vistas por certos setores como em vias de extinção. Confesso que cheguei a temer que acontecesse com elas o que aconteceu com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Seria visto também como um arranjo na base de sustentação do governo?

Creio mesmo que até o nome do ministério foi objeto de intensa disputa e não me surpreenderia se o formato que desagradou a tantos aliados seja mesmo a expressão de uma última linha de resistência. A presidenta anunciou o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, na sexta-feira, 2 de outubro. O “Estadão”, no dia 3, na primeira página, chamava ainda a pasta de ministério da Cidadania.

Nos dias que antecederam o anúncio, os meios de comunicação, com convicção, informavam que seria Cidadania o nome do ministério a ser criado para fundir (dissolver? aniquilar?) as três secretarias.

Hoje à tarde (05.10.2015), na cerimônia de posse, a presidenta Dilma corrigiu o anúncio do cerimonial da presidência, que havia colocado à frente a expressão “Direitos Humanos”. A presidente, ao corrigir, acrescentou: “Eles ainda insistem, insistem…”. A cena revela alguma tensão e preocupações com a hierarquização dos núcleos temáticos.

Já sabemos como as coisas são, sabemos também como elas foram, mas não sabemos como elas serão daqui pra frente. Mas devemos prevenir-nos contra alguns enganos. Conforme podemos depreender de certos indícios, o principal engano me parece ser imaginar que os grupos e facções que querem o fim das secretarias vão parar por aí.

Edson Lopes Cardoso

 

Edson Lopes Cardoso é jornalista e doutor em Educação pela USP

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