A literatura precisa de heróis ou de mais Hakuna Matata?

Escrito em 1998 pelo executivo de Hollywood Christopher Vogler, A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Escritores acaba de ser republicado no Brasil

Por  Antonio Luiz M. C. Costa, do Carta Capital 

Escrito em 1998 com a pretensão de ser não só um subsídio a roteiristas, mas também uma fórmula universal para a literatura e um quase místico manual de autoajuda para a vida, A Jornada do Escritor: estrutura mítica para escritores (488 págs., R$ 69,90), de Christopher Vogler, é republicado no Brasil pela Editora Aleph de acordo com a nova edição estadunidense de 2007, com nova introdução, mais ilustrações e análise de obras mais recentes (a versão anterior da obra fora traduzida em uma edição de 2006, esgotada, da Nova Fronteira).

O livro baseia-se, muito livremente, em O Herói de Mil Faces (Editora Pensamento, 416 págs., R$ 52), obra do mitólogo Joseph Campbell originalmente publicada em 1949 que ganhou grande popularidade a partir de 1977, quando George Lucas reconheceu ter baseado nela seu Star Wars e ainda mais em 1988, quando a rede pública estadunidense PBS divulgou o documentário O Poder do Mito, no qual Campbell (falecido no ano anterior), hospedado no Rancho Skywalker de Lucas, discutia o uso de suas ideias na trilogia do anfitrião.

Vogler é um consultor e executivo de Hollywood cujo currículo passa pela Disney, Fox e Warner. As primeiras versões de sua obra viraram uma febre nos estúdios desde 1992 e logo depois também entre aspirantes a escritores, principalmente nos gêneros da fantasia e da ficção científica. É discutível o quanto isso se deve à excelência do trabalho de Vogler e quanto à vontade de jovens autores e cineastas de seguir a moda e agradar a chefes e editores, mas o livro gerou um sem número de cursos e oficinas de escrita com a presunção de ensinar a fórmula única do sucesso na escrita e na vida.

Na nova introdução, o próprio Vogler admite, com certa relutância, que não é bem assim. A obra do mitólogo quis destilar o “monomito”, uma estrutura comum a mitos heroicos de tribos e civilizações antigas de cinco continentes, mas o livro do executivo, baseado em sucessos de Hollywood, oferece uma versão extremamente pasteurizada, descafeinada e padronizada de sua tese. É a concepção de heroísmo da cultura estadunidense de massas que, como ele mesmo veio a descobrir, é recebida de forma muito crítica em países como a Austrália e Alemanha.

Outra concessão, igualmente importante, foi o reconhecimento de que sua obra se adapta mal a histórias de mulheres. As civilizações antigas raramente as conceberam como heroínas épicas e a “americanização” do monomito por Vogler reduziu ainda mais seu papel. Ao se comparar sua versão com a de Campbell, salta à vista como mudança mais notável a revisão puritana do ápice da “jornada”.

Na obra do mitólogo, envolve “O Encontro com a Deusa” e “A Mulher como Tentação”, momentos nos quais o herói enfrenta os abismos da sexualidade, com seus prazeres e perigos, como um teste decisivo para merecer a vitória. Na versão de Vogler, essas etapas (mais “A Sintonia com o Pai”), são agrupadas numa assexuada fase de “Provação”, concebida como um encontro próximo com a morte. No seu guia, a mulher aparece mais como uma banal “Recompensa” (do herói), no lugar das etapas descritas por Campbell como “Apoteose” e “Bênção Última”, marcando sua elevação a um grau superior de consciência.

É de se perguntar se a influência de Vogler não foi uma das razões da redução do número de protagonistas femininas no cinema e tevê durante a última década. Em 2002, 16% dos papéis principais dos 100 filmes de maior bilheteria eram meninas ou mulheres, mas em 2014, apenas 12%, segundo o Center for the Study of Women in Television and Film, da Universidade de San Diego. Além de ter sido uma das causas da diminuição flagrante da criatividade e diversidade dos roteiros das grandes produções cinematográficas.

A capa do livro de Christopher Vogler
A capa do livro de Christopher Vogler

Mesmo as culturas tribais e antigas, deve-se lembrar, não viviam apenas de gestas heroicas. O “monomito” descrito por Campbell, cujo protagonista é tipicamente um herói civilizador que encarna os valores morais de seu povo, tem uma importância especial para a formação dos jovens guerreiros e para a sustentação ideológica da tribo, do Estado ou da religião, mas todos os povos também criaram histórias cômicas, eróticas, cínicas ou subversivas para explorar outros aspectos da condição humana e outros modos de ver a realidade. Querer reduzir tais histórias ao modelo da “Jornada do Herói” seria tirar delas sua essência ou, pelo contrário, reduzir a estrutura de Campbell a um esquema vazio de começo, meio e fim (se tanto). Não se ganha nada ao tentar reduzir ao monomito um Dom Casmurro de Machado de Assis, um Orlando de Virgina Woolf ou uma Metamorfose de Franz Kafka, por exemplo.O próprio Vogler nos dá, em sua obra, um exemplo inadvertido dos limites do seu trabalho. Em 1992, quando publicava a primeira versão de seu trabalho, um folheto corporativo de sete páginas intitulado Um Guia Prático para o Herói de Mil Faces, era também consultor da Disney e revisava o roteiro de O Rei Leão. Uma de suas sugestões aprovadas foi a mudança do papel do xamã-mandril Rafiki. Originalmente um personagem apenas cômico, recebeu uma das funções clássicas da “Jornada do Herói”, a de “mentor”, combinando sua irreverência original com um papel sério de guia e iniciador místico, tornando-o uma curiosa caricatura africana do mestre zen da tradição japonesa. Pode-se concordar com que isso foi uma melhora.Por outro lado, o autor se queixa de não ter sido ouvido quanto ao segundo ato, no qual o pequeno Simba encontra os bem-humorados Timão e Pumba e é criado na sua picaresca filosofia. Na sua visão, o filme deveria nessa etapa submeter o herói a uma série “realista” de testes, receber ensinamentos sérios de Rafiki e passar pela famosa “Provação” descobrindo seu poder numa batalha com um crocodilo, um búfalo ou algum outro inimigo formidável, enquanto seus novos amigos seriam meros “alívios cômicos”.

Segundo ele, a opção da Disney enfraqueceu o filme. Mas para as plateias que fizeram desse desenho um dos maiores sucessos do estúdio, foi correta. Juntamente com a majestosa abertura, a canção Hakuna Matata é a cena mais lembrada. Foram Timão e Pumba, não Simba ou Kiara, que ganharam uma série própria. Essa animação tem muitos aspectos discutíveis, mas afastar-se um tantinho da totalitária camisa de força do monomito para valorizar esses plebeus e seu ponto de vista foi uma decisão correta, até para demonstrar que o herói defendia valores mais vitais e democráticos do que a sombria tirania de Scar. Fazer dele um brigão amargo e angustiado à maneira do Batman, de Rafiki um mestre austero e jogar Timão e Pumba para segundo plano tiraria da história a maior parte de sua originalidade e alegria.

Não é dizer que um escritor não tem nada a ganhar da leitura desse manual. Tem suas utilidades, desde que não seja levado tão a sério quanto pede. Um autor às voltas com uma história de tom ao menos parcialmente heroico pode tirar muitas sugestões de como enriquecer seus personagens e seus desafios. Transformar um mero palhaço colorido em um insólito mentor, por exemplo, foi certamente uma boa ideia. O problema é o escritor sentir-se obrigado a empobrecer seu enredo ou seus personagens e tirar deles o que tenham de mais criativo, peculiar e interessante para adequá-los ao modelo, como faria se seguisse a sugestão de Vogler para escantear o simpático par de ladinos. Por mais que espere obter sucesso e aprovação, o mais provável é que fabrique apenas mais uma obra banal e insignificante.

Além disso, mesmo o autor principiante deveria descartar a tese de que o monomito é a única história a ser contada. A vida e a arte não são feitas só de heróis épicos. Outros tipos de personagens – inclusive as heroínas – pedem outras abordagens. “Infeliz a nação que precisa de heróis”, diz o Galileu de Bertolt Brecht. Infeliz, também, o autor que não sabe escrever se não for sobre heróis.

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