Conversações com Cheikh Anta Diop¹

Enviado por / FontePor Falo Preto

Essas entrevistas são o produto de uma série de conversações, registradas em gravador, em Dakar, em fevereiro de 1976, exatamente 10 anos antes da morte deste sábio no dia 7 de fevereiro de 1986. Elas foram concedidas ao etnólogo Carlos Moore e à escritora Shawna Moore, cujos de 1975 a 1980, quando residiam no Senegal, foram colaboradores próximos de Diop a quem estavam atrelados por fortes laços de amizade.

A princípio Diop resistia à idéia de uma entrevista. Ele só consentiu quando no meio de uma conversa Carlos Moore indagou: “E se você morrer amanhã, o que poderemos, fora suas obras, transmitir às futuras gerações sobre seu pensamento íntimo, principalmente no que concerne a estas questões pontuais que nos surgem tão corriqueiramente durante nossas conversas?” Diop nada respondeu, do dia seguinte em diante começaram entrevistas que se estenderiam por duas semanas, conduzidas atabalhoadamente hora em seu escritório no IFAN, hora na casa dos Moore. Nós vos oferecemos o essencial dessas entrevistas que na época foram publicadas integralmente em inglês pelo periódico mensal Nigeriano Afriscope (vol 7, nº2, fevereiro 1977) e nos Estados Unidos pelo Black Books Bulletin (vol 4, nº4, 1976).

I – Raça, Racismo e o lugar dos negros no destino da Humanidade.

Questão: No prefácio do seu livro The African Origin of Civilization você afirma: “A história da África negra continuará suspensa no ar e não poderá ser corretamente escrita até que os historiadores africanos ousem atrelá-la à história do Egito”. Seria possível elaborar este ponto no contexto do qual você mais adiante discute o desenvolvimento de um “corpo de ciências humanas africanas”, salientando algumas das questões vitais que estas ciências deveriam englobar?

Diop: Essa ideia acompanha a proposição de que a antiga cultura egípcia desfruta de uma posição, no que concerne às culturas africanas atuais, análoga ao papel que a cultura greco-latina desempenha em relação à cultura ocidental contemporânea. Você poderia imaginar um erudito ocidental pesquisando sobre a história ocidental sem fazer referências à cultura greco-latina? Poderia este trabalho ser considerado científico? O mesmo se aplica aos eruditos africanos em relação ao Egito Antigo. É por isso que eu digo que enquanto ignorarmos a cultura egípcia, a mais velha evidência de uma Civilização Africana, seremos incapazes de criar qualquer coisa no domínio das ciências humanas que possa ser considerado científico. É somente por uma sistemática referência ao Egito que poderemos introduzir uma dimensão histórica às ciências sociais, seja no campo linguístico ou em qualquer outro. Por exemplo por que não substituir o estudo das leis romanas, nas nossas faculdades de Direito, pelo estudo da jurisprudência egípcia? O mesmo se aplica à filosofia. O Antigo Egito estava na origem de um sistema filosófico elaborado e não uma mera cosmogonia como muitos ainda sustentam.

Eu considero a cultura um baluarte que protege um povo, uma coletividade. A cultura deve acima de tudo desempenhar uma função protetora; ela deve assegurar a coesão do grupo. Seguindo esta linha de pensamento a função vital do corpo de ciências humanas, é desenvolver este senso de bens coletivos através de um reforço da cultura. Isso pode ser feito desenvolvendo-se o fator linguístico, restabelecendo-se a consciência do africano e do negro a ponto de fazê-los chegar a um sentimento comum de pertencimento ao mesmo passado histórico e cultural. Quando isto for feito, será muito mais difícil “dividir para reinar” e opor comunidades africanas umas contra as outras. Meu sentimento é o de este seja o objetivo de um novo corpo de ciências humanas africanas, contanto que isso não se afaste do estrito termo científico. Isso é o mais importante: jamais se afastar da trilha da ciência.

Questão: Em 1954, Stolen Legacy, foi escrita por George G.M. James, cujo afirmou que a filosofia grega foi tomada emprestada do sistema de “mistérios” desenvolvido pelos Egípcios. Há uma conexão entre os mistérios sobre os quais James escreveu em Stolen Legacy e as ciências humanas que você mencionou?

Diop: Se você voltar aos meus trabalhos, especialmente Nations nègres et culturevocê verá, definitivamente, a conexão. Infelizmente eu não tinha informações a respeito do livro do James enquanto fazia minha pesquisa magna sobre o Antigo Egito no começo dos anos 50. Mas, se você olhar para os livros cuidadosamente, verá a relação entre eles. Nossos trabalhos concordam que o Egito Antigo foi o berço científico de onde emergiram, muito tempo depois, as contribuições científicas dos gregos. Não há dúvida sobre isto. De fato nós sabemos de muitos casos onde eruditos gregos atualmente inventam viagens fictícias para o Egito com a finalidade de obter legitimidade científica, tanto quanto, seguindo o mesmo caminho, fazem alguns irmãos nossos em relação à Europa. James aconselha a que se ocupem dos mistérios do elaborado sistema de iniciação através do qual os egípcios transmitiam conhecimento. Precisaria me alongar muito para entrar neste assunto…

Questão: Você salienta a necessidade de grupos de pesquisa trabalhando em muitas dessas idéias que você levantou. Você poderia detalhar essa necessidade e falar especificamente dos tipos de habilidades que os pesquisadores africanos precisam para acompanhar algumas das questões que você levantou?

Diop: O trabalho que empreendi no começo dos anos 50 foi realmente o trabalho de uma geração de eruditos, entretanto eu era novo para perceber. O que eu quero dizer é que havia tantas disciplinas para serem dominadas que ninguém tinha a menor esperança de alcançar sucesso por si próprio. Por exemplo, eu havia começado a investir no problema do Egito Antigo e sua relação com o resto da África via linguística e história. Mas logo deu para perceber que eu teria que dominar vários outros campos tais como etimologia, antropologia e por aí vai. Consequentemente, eu fui levado a enfrentar bioquímica, física, matemática, filosofia etc. Eu tive também que aprender a linguagem dos antigos egípcios para comunicar-me com eles sem intermediários, como tradutores. Então, você pode ver o que eu quero dizer… precisamos deixar de ser diletantes, bisbilhotando aqui e ali, e tornarmo-nos bem treinados, especialistas multidisciplinares.  Precisamos de uma nova divisão de trabalho entre nossos pesquisadores. Aqueles que não forem capazes de dominar várias disciplinas ao mesmo tempo devem ao menos dominar uma delas – mas completamente. É o mínimo que podemos esperar de pesquisadores científicos sérios de hoje. A estrutura científica do mundo negro deve cultivar competência.

Questão: Você fala muito sobre os arianos. Especificamente, o que é um ariano e qual é sua hipótese sobre a origem deles?

Diop: Por “ariano” eu tinha designado os primeiros habitantes brancos do que eu chamo de “berço do Norte”, isto é, norte da Europa. Dentro deste contexto, o termo ariano é destituído da conotação racista dada a ele por pessoas como Hitler. Por “ariano” eu designo as originais tribos brancas do norte da Europa, que falavam o que é conhecido como linguagens “indo-europeias” e cuja dispersão começou após o segundo milênio antes de Cristo. Conhecemos essas populações brancas originais pelo termo genérico de ariano. Então, como usado em meus trabalhos, o termo ariano não tem a ver nem com pureza racial nem com outras noções racistas. A razão pela qual eu freqüentemente usei o termo em meus trabalhos, ao invés do termo “indo-europeu” usado pela escola européia, é porque “indo-europeu” tem uma conotação puramente linguística. Não sendo racista, eu não hesito em usar os termos “ariano” quando eu quero designar essas originais populações brancas ancestrais dos atuais europeus. Como eu livremente uso o termo “negro” em meus trabalhos, eu me sinto igualmente à vontade usando o termo” ariano”.

Quanto à origem dos arianos, vemos que eles apareceram subitamente por volta de 1500 AC, com um ramo invadindo a Índia e outro progressivamente ocupando o lado oriental da Europa Mediterrânea. Tradicionalmente, foi-se pensado que essas populações vieram das estepes da Eurásia e que foram uma espécie de migrantes asiáticos. Agora podemos afirmar categoricamente que os brancos europeus originaram-se da Europa mesmo e que sua origem só pode ser encontrada nas populações negras que migraram da África para Europa dezenas de centenas de anos antes. Como exatamente uma raça branca desenvolveu-se a partir desses europeus negros ainda é cientificamente obscuro, mas não há dúvidas de que este foi o caso. Se não, como se explicar a origem dos brancos?

Sabemos que a raça humana originou-se na África e que esta raça, como já expus em outros trabalhos meus, era profundamente pigmentada ou pele negra. Nenhum cientista sério iria contestar isto hoje. Parece que dentre algumas daquelas populações negras do Paleolítico Superior, que aventuram-se ao norte em direção ao Mar Báltico durante o período do calor, ocorreram mudanças biológicas definitivas, levando à aparência dos tipos brancos “alpino” e “nórdico”. Em todo o caso, tanto quanto a ciência sabe hoje, antes de 20,000 AC não havia qualquer branco. Os amarelos apareceram ainda mais tarde, por volta de 10-15,000 AC. Hoje a ciência pode confiar na evidência material irrefutável para ilustrar estes fatos.

Questão: Você fala de duas raças – a ariana e a africana. Você poderia desenvolver isto em termos do lugar que a teoria da raça ocupa na luta global dos “arianos” para continuar seus esforços na conquista do mundo?

Diop: Racialmente falando, eu usei termos como “negro” e “preto” – mas não “africanos” – para significar raça. África é uma delimitação puramente geográfica. Agora, você está falando sobre lutas entre pessoas negras e brancas em tempos contemporâneos ou antigos?

Questão: Dos tempos antigos até nossa época?

Diop: É delicado usar o termo “ariano” neste amplo contexto. Ainda assim, se analisarmos as coisas imparcialmente descobrimos que, até uma certa época, o planeta inteiro era habitado somente pela população negra. Considerando que a raça humana desenvolveu-se na África e que esta primeira raça humana era pele-negra, os negros tinham que estar na origem das primeiras civilizações do mundo. A sua dominação estendeu-se pelo globo inteiro. A global supremacia dos negros estendeu-se até o período assírio. Por volta de 750 AC esta supremacia estava definitivamente em declínio. Esta era a época em que a 25º Dinastia Sudanesa estava fazendo esforços enormes para sustentar a supremacia egípcia contra os terríveis golpes assírios. Nós sabemos que isso falhou e que em 633 AC Tebas foi saqueada. Seguindo os assírios o Egito foi dominado pelos persas do rei Cambises. Como você sabe, Cambises incendiou todos os templos do Egito, fez escravos e saqueou o Egito. O lema de Cambises era “Pisem em tudo que fez a grandeza do Egito”. Agora, disto não poderíamos concluir que a invasão de Cambises foi equivalente a uma guerra racial, embora detectemos bem claramente uma determinação peculiar da parte dos persas de diminuir e humilhar os representantes da civilização mais velha e venerável.

Quando falamos de racismo na Antiguidade, é importante entender que racismo como o conhecemos em nossos dias não poderia ser expresso da mesma maneira em face aos negros, pela simples razão que eram os negros que haviam monopolizado o conhecimento técnico, cultural e industrial. As outras raças tinham que modelar seu desenvolvimento tecnológico, cultural e religioso pelos êxitos da tecnologia, ciência, cultura e arte egípcias. Os Gregos foram forçados a vir humildemente e beber na fonte da cultura egípcia. Por conseguinte, naquela época, o respeito devido ao homem negro era imenso. Claro, que testemunhamos o excessivo ódio assírio, mas olhe a devoção demonstrada por Alexandre ao Egito e à cultura egípcia! Após conquistar a inteira bacia oriental mediterrânea, Alexandre foi longe ao estabelecer a capital do império no Egito, não na Grécia continental nem na Macedônia. Você não acha isto estranho? Seria a mesma coisa se a França estabelecesse Dacar como capital, ao invés de Paris, após ter conquistado seu império colonial. A decisão de Alexandre é um indicativo da ascendência cultural exercida pelo Egito sobre os povos não-negros, mesmo num tempo em que ela já havia perdido sua soberania nacional. A civilização helenística é grata ao Egito de forma imensurável. Foi ao Egito que todos os cientistas gregos do período helenístico dirigiram-se, em busca de conhecimento. Portanto, racismo, no sentido moderno da palavra, não podia ter sido exercido pelos brancos contra os negros da mesma maneira, durante Antiguidade.

O problema é complexo pois encontramos, ao término do período alexandrino, e mais especificamente ao final da ocupação grega no Egito, positivamente práticas racistas discriminatórias em vigor contra os negros egípcios em seu próprio lar. Tal fenômeno tornou-se mais e mais explícito com a invasão romana ao Egito e norte da África. Eu devo dizer que definitivamente houve um enfoque racista dos romanos e gregos pós-alexandrinos. Este ponto de vista racista transformou-se claramente em práticas raciais discriminatórias de várias espécies… egípcios eram até barrados de entrar em Alexandria e de viver em certas áreas residenciais. Segregação residencial existiu nessa época, afirmadas ao longo de linhas raciais. Gregos e romanos aplicaram isso aos egípcios. Isto fica explícito na legislação colonial daquela época. Racismo portanto existiu na Antigüidade. Do período greco-romano até a Idade Média podemos documentar seu progresso. Todos sabemos o resto.

Questão: Num livreto intitulado The Cress Theory of Color Confrontation and Racism (1970), Dr. Frances Cress Welsing argumentou que a origem do racismo pode ser encontrada no conhecimento por parte dos brancos de seu status minoritário e deficiência de melanina quando comparado aos majoritários peles-negras. Qual sua opinião?

Diop: Não há dúvida alguma de que a raça branca, que apareceu pela primeira vez durante o Paleolítico Superior – por volta de 20,000 AC – foi o produto de um processo de despigmentação. Claro, seria difícil, se não impossível, determinar a data exata na proporção numérica destes proto-brancos aos seus antecessores negros naquele período na Europa. Entretanto, não há dúvida de que a perspectiva cultural destes proto-brancos estava condicionada, durante a época glacial, a condições severas de seu “berço do Norte” até seus movimentos migratórios em direção às áreas do sul, por volta de 1500 AC. Moldados por seu berço ambiental, esses primitivos brancos nômades, desenvolveram, sem dúvida, uma consciência social típica do ambiente hostil ao qual eles foram confinados por longo período. Xenofobia foi uma das características desta consciência social. Herança patriarcal, outra. Agora, se tentarmos investigar mais fundo sobre os hábitos psíquicos desta população naquela época, eu tenderia a concordar com o Dr. Welsing.  Ainda assim, devemos ser cautelosos porque, quando lidamos com o reino abstrato, o reino da consciência individual considerado por um período de tempo tão longo, do qual não temos nenhum dado documentado, uma grande quantidade de cuidados é necessária. Eu creio que o que Dr. Welsing precisamente avaliou foi que quando da origem do racismo precisamos encontrar reflexo defensivo definitivo. Eu acredito ser o racismo uma reação ao medo, mais freqüente quando não confesso. O racista é alguém que sente-se ameaçado por alguma coisa ou alguém que ele não pode ou consegue controlar. Este sentimento de ansiedade e medo face ao elemento desconhecido e incontrolável é muito certamente um fator essencial do racismo tanto antigamente quanto nos tempos modernos.

É possível que os brancos primitivos fossem conscientes de sua minoria, e então isolaram-se num reflexo de perpetuação étnica. Isto é uma possibilidade, não uma certeza. Entretanto, isto pode ter sido a origem de posteriores teorias de pureza racial. Por outro lado, não temos qualquer evidência de que os negros nos tempos antigos até a época medieval desenvolveram qualquer atitude comportamental em relação a outras raças. Eu acho que isso precisa ser estudado cuidadosamente. O que eu acho notável é que nas atitudes individuais dos negros para com outras raças há uma diferença de abordagem. Negros não são racistas. Negros não tem medo de contatos étnicos. Brancos sim! Eu acho que em grande medida o racismo se origina deste medo. Seria uma característica herdada da vida nômade dos arianos primitivos? Eu não sei. É um instinto biológico ou de outra natureza? Eu também não sei.

O que está bastante evidente, contudo, é que esta xenofobia é, definitivamente, um traço entrincheirado das culturas europeias. Eu acho que mesmo os intelectuais europeus concordariam comigo neste ponto. De fato, ocorre que, uma das fraquezas das civilizações negras, particularmente durante o tempo medieval, foi a abertura, o cosmopolitismo destas sociedades. Os reinos negros medievais estavam abertos para pessoas de todos os lugares. E hoje uma das fraquezas básicas das sociedades africanas é que elas ainda mantêm esta característica cosmopolita herdada. Nacionalismo na África emergiu como um reflexo puramente defensivo. Nacionalismo estreito, xenofobia, exclusão de estrangeiros nunca foi uma política das culturas africanas. Sempre encontramos isto associado a culturas indo-europeias.

Questão: Em Nations nègres (1955) você provou que o Egito Antigo era negro. Desde então você fez alguma pesquisa adicional para aumentar suas demonstrações anteriores?

Diop: Claro. Eu fiz um extenso trabalho de pesquisa no correr dos anos, neste aspecto particular da história africana e tornei meus resultados públicos. Eu posso me referir ao Relatório Final do simpósio crucial da UNESCO “The Peopling of Ancient Egypt and the Deciphering of the Meroitic Script”, realizado em Cairo, de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 1974. Seria muito demorado avaliar os resultados de minhas pesquisas mais recentes, mas elas estão quase todas à disposição nas publicações do Instituto Fundamental da África Negra (IFAN). Como você pode ver, particularmente no relatório da UNESCO, minhas conclusões tiveram grande aceitação em círculos científicos internacionais. O Simpósio da UNESCO, como você sabe, reuniu, sob meu pedido, os mais reputados especialistas em egiptologia do mundo.

Questão: Num trabalho feito por um erudito africano neste país, The Destruction of Black Civilization, Dr. Chancellor Williams expõe longamente sobre como negros perderam sua civilização. Qual a sua avaliação de algum dos fatores que fizeram com que os negros perdessem sua civilização?

Diop: Precisamos delimitar épocas históricas definitivas e isolar de cada época e civilização em questão as razões for sua queda. Vimos como as primeiras civilizações desenvolvidas pela raça humana – das quais o Egito foi o supremo gigante – desmoronou devido a repetidos assaltos e invasões de elementos indo-europeus. Como resultado, os antigos egípcios foram praticamente reduzidos a um nível quase animalesco, o que ocasionou grande número de migrações. Este não foi somente o caso do Egito, mas também de outras sociedades negras da época. Eventos similares ocorreram mais e mais através dos séculos até a Idade Média. Se tivermos que isolar o elemento comum a todas essas ocorrências da ruína negra, então eu não hesitaria em afirmar que este elemento foi a perda da soberania nacional.

A fraqueza interna na composição de uma sociedade que favorece a perda de sua soberania nacional uma vez sob ataque, é um complexo assunto de análise.  Exatamente, o trabalho que estou desenvolvendo atualmente tem a ver com este assunto. Evidentemente, não é o tipo de assunto que possa ser detalhado em uma entrevista… ainda assim eu posso adiantar que se, a despeito de muitas destruições calamitosas, invasões, assaltos, comércio escravo e conquistas impostas aos mundos negros antigo e medieval, se os negros mantiveram os aspectos básicos de sua civilização, foi porque a composição interna das antigas sociedades negras, com todas as suas deficiências, era perfeitamente válida. Era válida porque serviu à função mais essencial a qual a cultura deve servir, e o que eu quero dizer é sobrevivência! O que mais salvou o povo negro, se não o conjunto de instituições políticas, econômicas e culturais desenvolvidas pela civilização negra através dos tempos? Sem dúvida, em termos de progresso material e tecnológico, a derrota de sucessivas civilizações negras causaram atrasos imensos. Ainda assim, estamos aqui e o que é mais, ainda capazes de ter a determinação de organizar e efetuar uma volta nos tempos modernos, a despeito das destruições, da escravidão, das mentiras, das falsificações escolares… O que conta para esta determinação além da validade de nosso comum legado cultural e histórico? Acredito que você entende o que eu quero dizer! A perda na soberania nacional é, em cada caso estudado, a causa da ruína das civilizações negras antigas e medievais. É o meu ponto de vista.

Questão: Mas e a respeito das fraquezas internas dessas civilizações negras como um fator de sua própria ruína?

Diop: A fraqueza interna de qualquer sociedade conhecida serve para justificar a vitória de qualquer inimigo sobre aquela sociedade, apenas após a conquista ser alcançada. O Império Romano foi derrotado por bárbaros culturalmente e tecnologicamente inferiores; os gregos helênicos foram conquistados pelos romanos; os árabes medievais e os hunos conquistaram civilizações europeias; a Alemanha de Hitler conquistou as nações igualmente industrializadas da Europa e quase pulverizou a Inglaterra; a Alemanha vitoriosa, por sua vez, foi conquistada… eu posso citar numerosos exemplos desta espécie. Se fraqueza interna for a causa final para a ruína de uma civilização, então todas as sociedades vivas estão susceptíveis a serem conquistadas.

As fraquezas internas de uma sociedade levam à revolução e a mudanças sociais até um certo ponto. Tal como, essas fraquezas podem também ser vistas como um fator condicionador do progresso porquanto levem a mudanças sociais. Nos meus trabalhos, particularmente em L´Afrique noire precoloniale eu detalhei uma porção de fraquezas sociais dos antigos estados e sociedades africanas. Felizmente, tais fraquezas existiram: se não tivessem existido, estas sociedades teriam permanecido sem modificações. Como nós sabemos, é impossível para qualquer sociedade permanecer sem modificações com o passar do tempo. A “sociedade perfeita”, isto é, a sociedade sem fraquezas, poderia ser uma sociedade perfeitamente imóvel. Contradições internas estão na base das transformações sociais mais profundas. Quando falamos sobre fraquezas internas, na verdade queremos dizer contradições sociais. De novo eu digo, felizmente, as antigas sociedades negras apresentavam este tipo de elementos conflitantes. Por outro lado, a maneira pela qual uma sociedade transmite conhecimento, por exemplo, é fundamental para o desenvolvimento da sua tecnologia e crucial para sua total expansão. A esse respeito, o sistema de iniciação através do qual o conhecimento é transmitido nas sociedades africanas é tipicamente egípcio. Contudo, este sistema que se generalizou nas sociedades africanas, não é a melhor maneira de se transmitir ou generalizar conhecimento científico. Ele não leva em conta o exame crítico das teorias científicas. Isso tem sido extremamente prejudicial para o desenvolvimento tecnológico e social das sociedades negras tradicionais. O monopólio do conhecimento por um restrito grupo de religiosos tem sido nocivo para o desenvolvimento das sociedades negras. Mesmo hoje, nas vilas, os anciãos só liberam, em seu leito de morte e para um filho favorito, parte do conhecimento acumulado ao longo dos séculos. Isso acontece pouco antes de um ancião morrer. Você pode imaginar a ineficiência e a perda que envolve este tipo de prática, considerando que o velho já perdeu grande parte de suas faculdades mentais e apenas pode transmitir um amálgama de diretrizes confuso e desconexo.

De qualquer maneira, eu acho que você concorda comigo que, a menos que você me conceda uma grande quantidade de horas para explicar e documentar meus pontos de vista no que concerne a esta questão, eu realmente não posso tratar deste problema em uma entrevista.

Questão: Você discute a futura organização da África como sendo a de uma confederação de três áreas no continente que tenham relações próximas e que irão basicamente se direcionar para o desenvolvimento de um sistema político unificado. Por favor desenvolva essa ideia.

Diop: Como você sabe, eu escrevi um livro dedicado exclusivamente a esta questão. Na minha opinião, o estágio de micro-estados, como poderia ser visto na Europa no século XIX, e como pode ser visto hoje na África, se tornou um anacronismo. Hoje, a única solução política viável para a África está em um Estado continental. Se um Estado continental não puder ser alcançado em um primeiro estágio, então deve-se, pelo menos, aspirar a uma união dos estados subsaarianos, como primeiro passo. Por quê? Pelo simples fato de que nos nossos tempos, um Estado que não consegue controlar e defender seu espaço cósmico e atmosférico, não pode ser considerado independente. Como poderiam estados compostos por 200 mil ou mesmo muitos milhões de habitantes almejar obter os meios pelos quais eles poderiam defender e controlar seu espaço cósmico? Nestes tempos, o único Estado viável é aquele que consegue encarregar-se de atividades em espaços exteriores. É por isso que no presente apenas a União Soviética, os Estados Unidos e a China podem ser considerados como estados verdadeiramente independentes.

Minha ideia de uma união continental é a de uma federação flexível que não sufoque as identidades nacionais mas na qual defesa, relações exteriores e comércio exterior sejam adquiridos no bojo de um governo continental. Veja o que aconteceu recentemente em Uganda. Toda a África foi humilhada pela reide de Israel que serviu para mostrar que a independência dos governos africanos é puramente simbólica.  Ninguém pode chegar e fazer o que quiser – de fato, mesmo sequestrar o Chefe de Estado – e sair ileso nas nossas atuais nações “independentes”! Apenas interesses egoístas e pessoais estão mantendo a África longe de um estado continental.  No momento tudo que temos são regimes instáveis, golpes, contragolpes e situações tipicamente sul-americanas. Não há segurança, nem para o indivíduo nem para as coletividades nacionais. O que existe hoje pode desaparecer amanhã como resultado de um golpe. Como pode a África criar qualquer instituição permanente ou avançar tecnologicamente nestas condições?

Em um futuro próximo, quando víveres e recursos naturais se esgotarem da face da Terra, haverá de ser na profundeza dos mares que o homem procurará por comida e substâncias cruas. Como, você pode perguntar, um país como o Gabão habitado por 200 ou 400 mil pessoas, ou o Senegal com seus 5 milhões de habitantes, mergulhará nas profundezas do oceano com a intenção de alimentar a nação assegurando os recursos naturais necessários para promover e sustentar seu desenvolvimento material? É como pedir para um aleijado que compita nos jogos olímpicos. Não é? Apenas uma união continental pode salvar a África. No livro eu já havia mencionado, você verá que eu detalhei os meios pelos quais uma união como esta pode promover o desenvolvimento industrial, tecnológico, político e científico dos povos africanos. Há muito mais a ser dito.

Questão: Qual são suas opiniões sobre o papel que os negros devem desempenhar nos Estados Unidos, no Caribe e no Pacífico Sul no contexto do desenvolvimento do fortalecimento do africano internacional?

Diop: O futuro dos negros espalhados pelo mundo está inter-relacionado. Era assim no passado quando as civilizações negras estavam sobre severa pressão. É mais evidente ainda no presente. O Estado continental africano é pré-requisito para a sobrevivência das sociedades negras onde quer que elas posam estar. As comunidades negras devem encontrar uma maneira de articular sua união histórica. Os vínculos entre negros da África, da Ásia, da Oceania, do Caribe, da América do Sul e dos Estados Unidos devem ser fortalecidos sobre uma base racional.

Questão: Você poderia, por favor, falar sobre a situação corrente na África Meridional?

Diop: É irracional pensar que qualquer africano, de onde quer que seja, possa fazer planos para o futuro, enquanto o problema da África do Sul não for resolvido. A África do Sul é o obstáculo no caminho do desenvolvimento africano. De fato, tornou-se imperativo libertar a África do Sul em tempo de se evitar uma guerra nuclear. Esta é a minha maneira de pensar. Esperar é dar à África do Sul tempo necessário para lentamente desenvolver sua capacidade nuclear. Se isto for permitido, não haverá equilíbrio para o terror e consequentemente outros Estados africanos ficarão impotentes para agir. Então, no interesse da paz mundial, necessitamos imediatamente intensificar a luta pela liberdade da África Meridional. De outra maneira, quaisquer projetos, políticos ou não, que venhamos a ter, não terão significado algum. O regimeracista da África do Sul precisa ser liquidado sem delongas. Caso contrário, haverá uma guerra atômica na África nos próximos 5 ou 10 anos. Dentro de menos de seis anos a partir de agora, África do Sul terá à sua disposição um pequeno estoque de armas nucleares suficiente para criar pânico maciço entre os africanos…

Questão: Como cientista, qual o papel que você vê ciência e tecnologia desempenhando na segunda parte do século XX? Como isto afetará o povo negro?

Diop: Eu acredito que durante esta entrevista eu expliquei as condições globais para a utilização da ciência e da tecnologia. Nenhum deles pode ser alcançado sem a existência do Estado continental da África, ou, ao menos, uma união dos Estados sub-Saara. O enorme progresso da ciência e tecnologia do século XX corre o risco de virar-se contra o desenvolvimento da África e do povo negro em geral.  Ciência e tecnologia permitirão a outros Estados reforçarem seu poder e estar em uma posição melhor para continuar o domínio sobre os fragmentados Estados africanos. Tenho receio de que, neste contexto, progresso científico, ao invés de agir a nosso favor, trabalhará em nosso detrimento, a não ser que criemos condições sociais e políticas para exploração e utilização racionais da ciência e tecnologia.

Questão: Em muito do mundo ocidental e especialmente nos Estados Unidos da América a mídia de massa (rádio, televisão, jornais e revistas) teve um efeito profundamente negativo nos negros?

Diop: A mídia de massa teve um efeito negativo em todos os povos. Quanto ao efeito que teve nos negros nas Américas, eu posso apenas esperar uma intensificação dos contatos culturais entre os negros da África e os das Américas. Acredito ser este o único jeito que possamos chegar a um renascimento cultural, que beneficiará a todos nós. Quaisquer realizações culturais alcançadas na África poderão tão somente ter um efeito benéfico nos negros das Américas. E vice versa, quaisquer contribuições culturais válidas que emerjam dos negros das Américas também afetarão positivamente todos os outros membros do mundo negro. Devemos apoiar-nos uns aos outros para evitar que afundemos. É um fato importante. Embora participemos de diferentes mundos políticos, compartilhamos uma mesma alma cultural. Para reforçar esta identidade em comum é necessário que lutemos contra o nefasto efeito da mídia de massa.

1. Historiador, antropólogo, físico e político o senegalês Cheikh Anta Diop é pai do Panafricanismo e um dos maiores pesquisadores do continente. Responsável pelas pesquisas científicas sobre a negritude do Egito Antigo, que revolucionou a história da África e do mundo.

Foto em destaque: Imagem retirada do site Galileu

 

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