Discussões Sobre a Origem da Filosofia e o Racismo Epistêmico

Reprodução/ Youtube

Por Rodrigo Castilho Do Educa Help

Amigas e amigos filósofas(os), nesta semana daremos continuidade em nossas discussões sobre a origem da filosofia. Para tal, usaremos o livro História da Filosofia vol.I, dos filósofos italianos Dario Antiseri e Giovanni Reale. Mostraremos um lado oposto da discussão com Renato Noguera, tendo como base a obra Ensino de Filosofia e a Lei 10.639.

Os italianos afirmam no início da obra que a filosofia é uma invenção grega, apesar de o tema ser ainda debatido.

“Naturalmente, sobretudo entre os orientalistas, não faltaram tentativas de situar no Oriente a origem da filosofia, especialmente com base na observação de analogias genéricas constatáveis entre as concepções dos primeiros filósofos gregos e certas ideias próprias da sabedoria oriental. Todavia nenhuma dessas tentativas teve êxito. Já a partir de fins do século dezenove, a crítica rigorosa produziu uma série de provas verdadeiramente esmagadoras contra a tese de que a filosofia dos gregos tivesse derivado do Oriente.” (2003, p.4)

Os autores utilizam argumentos no mesmo sentido para afirmar que a filosofia não poderia estar presente no Egito antes de Tales de Mileto e os demais gregos que vieram depois.

A outra tese que traremos, será a de Renato Noguera. Para o filósofo brasileiro, já existiam textos filosóficos no Egito, antes mesmo de Tales de Mileto. “Sem dúvida, os manuais de filosofia convergem para um ponto em comum, a filosofia é de origem grega. Mas, diversas pesquisas têm contestado essa primazia grega explicitando o caráter pluriversal da filosofia.” (2013, p.1)

Primeiramente, vamos analisar a opinião de Reale e Antiseri. Acreditamos que o parágrafo apresentado nos mostra algumas técnicas de convencimento, as quais as alunas e os alunos devem atentar-se ao estudar qualquer conteúdo de humanas e ler qualquer texto. Destaquemos um trecho:

“Já a partir de fins do século dezenove, a crítica rigorosa produziu uma série de provas verdadeiramente esmagadoras contra a tese de que a filosofia dos gregos tivesse derivado do Oriente.” (2003, p.4)

O que seria uma crítica rigorosa? O que seriam provas verdadeiramente esmagadoras?

Tais expressões não deixam dúvidas à(ao) leitora(or) de que a filosofia tem origem grega. É difícil até acreditar que este tema é objeto de debates. Porém, vejamos o que Renato Noguera nos diz sobre a discussão:

“Destaca-se o fato de que Cheik Anta Diop (1954, 1967, 1977), George James (2005), Molefi Asante (2000), Théophile Obenga (1990, 1992, 2004), Mogobe Ramose (2011) e José Nunes Carreira (1994) convergem em favor da tese de que temos textos de Filosofia africana, assim como de outras regiões do mundo, bem anteriores aos textos gregos que são reconhecidos pela historiografia ocidental como sendo dos primeiros filósofos” (2014, p.12-13)

Os autores italianos também afirmam que foi no século XIX que as ‘provas esmagadoras’ foram produzidas. Não podemos passar por essa informação sem pensarmos no imaginário europeu sobre os negros na época; o iluminista Voltaire (1694-1778) afirmou que: ‘Examino um filhote de negro de seis meses um elefantizinho, um macaquinho, […] um animal que caminha sobre duas patas, […] provido de um pouco mais de ideias”(2014, p.31). Kant (1724-1804) também não pensava muito diferente. Vimos no texto Renato Noguera e a Filosofia Afroperspectivista a opinião do filósofo alemão: “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos[…]”. Por fim, trago mais um trecho de outro alemão, Friedrich Hegel (1770-1831):

“[…]a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis […] negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável […]. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano […]. Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato, inexistentes.                    (Hegel, 1999, 2014, p.83-86)

Cabe trazermos um conceito importantíssimo para a filosofia afroperspectivista. Racismo epistêmico (2014, p.27). É um conjunto de dispositivos que recusam a validade das justificativas feitas a partir de referenciais não ocidentais. Noguera aponta que o racismo epistêmico marca os argumentos tradicionais sobre o nascimento da filosofia. Ou seja, existiria um esforço em negar a validade de possibilidades de uma filosofia anterior ao ‘nascimento da filosofia grega’. Como seria possível que Voltaire, Kant e Hegel pudessem aceitar as contribuições de povos que eles consideravam inferiores? Porque não questionarmos a validade das ‘provas esmagadoras’ citadas por Reale e Antiseri?

O britânico Martin Bernal aponta, segundo Noguera, que no século XIX (século em que surgiu a citada ‘crítica rigorosa’) um modelo ariano tornou-se o mais influente nos meios acadêmicos ocidentais. Tal modelo teria sido o  “reponsável pelo silenciamento do Egito enquanto civilização que influenciou profundamente o mundo helênico(…)”(2013, p.3). Noguera ainda cita o filósofo anglo-ganês Kwame Anthony Appiah.  “‘Filosofia’ é o rótulo de maior status no humanismo ocidental. Pretender-se com direito à Filosofia é reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do Ocidente”.(2013, p.6)

Como podemos resumir o argumento de Noguera?

  • Existia uma filosofia egípcia anterior aos dos considerados ‘primeiros filósofos’;
  • O racismo epistêmico invalida perspectivas não eurocêntricas;
  • A filosofia é um rótulo que marca a tradição ocidental;
  • A Tradição Ocidental é marcada pelo racismo;
  • O racismo epistêmico invalida as filosofias não ocidentais;
  • Logo, a origem da filosofia deve ser ocidental e a filosofia egípcia é negada.

Renato também traz contribuições do filósofo sul-africano Mogobe Ramose. Segundo ele, os povos africanos sofreram pela colonização europeia um epistemicídio. “Por epistemicídio se deve entender o assassinato de perspectivas intelectuais que não estão dentro dos cânones europeus, no caso sob análise, Ramose, Diop e Bernal convergem para um entendimento comum, a filosofia africana foi invalidada pelos critérios ocidentais de filosofia.” (2013, p.5)

Que tal analisarmos uma das objeções sobre uma filosofia africana anterior aos consagrados gregos? Cito Antiseri e Reale:

  1. “Na época clássica, nenhum dos filósofos ou dos historiadores gregos acena minimamente à pretensa origem oriental da filosofia.” (2003, p.4)

Este mesmo argumento poderia ser utilizado para dizer que os gregos não apontaram uma origem egípcia da filosofia. Mas como poderíamos esperar que Aristóteles, por exemplo, o fizesse enquanto seus escritos apresentavam afirmações como a seguinte, da obra Fisionomia:

“Aqueles que são muito negros são covardes, como, por exemplo, os egípcios e os etíopes. Mas os excessivamente brancos também são covardes, como podemos ver pelo exemplo das mulheres; a coloração da coragem está entre o negro e o branco” (2010, p.13)

Noguera concorda com o pesquisador cubano Carlos Moore, ao dizer que “o racismo antinegro estava presente entre gregos e romanos na Antiguidade.” (2014, p.24)

Contamos com nosso colunista convidado Carlos Henrique de Oliveira, escritor, socialista e trabalhador da saúde. Em seu texto Silenciamento e Deslegitimação: interações concretas e simbólicas na construção da opressão, ele aponta que a hegemonia europeia está baseada em uma cultura de silenciamento e deslegitimação de movimentos sociais negro e feminista, por exemplo. O epistemicídio funciona como ferramenta para a negação da cultura dos dominados e oprimidos por uma cultura eurocêntrica e machista. Este texto vai de encontro com o que vimos em Angela Davis e o Mito da Mulher Negra, em que vimos algumas formas utilizadas por filósofos clássicos para deslegitimar as mulheres e os escravos.

Vamos ver um pouquinho sobre a filosofia do Egito então?

As pesquisas de José Nunes Carreira (de Portugal), Molefi Asante (dos EUA) e Theophile Obenga (da República do Congo) identificaram registros filosóficos em 2780 a.C. de Imhotep.

Veremos na semana que vem um pouco do escriba egípcio Amen-em-ope. Seus documentos são datados de aproximadamente 1300 a.C. A questão que atravessa a obra de Amen-em-ope é a virtude do silêncio (ética da serenidade)

Revisão: Luisa I. Moyses.

Referências Bibliográficas:

Giovanni, Reale. História da filosofia: filosofia pagã antiga, v.1. Trad, Ivo Storniolo. São Paulo, 2003.

HEGEL, Georg W. Filosofia da história. Tradução de Maria Rodrigues, Hans Harden. Brasília: UnB, 1999.

História geral da África, II: África antiga / editado por Gamal Mokhtar. – 2.ed. Brasília : UNESCO, 2010.

NOGUERA, Renato. A ética da serenidade: o caminho da barca e a medida da balança na filosofia de Amen-em-ope. Ensaios Filosóficos, Volume VIII – Dezembro/2013

NOGUERA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 10.639. Rio de Janeiro: Pallas: Biblioteca Nacional, 2014.

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