PMs à paisana torturam e matam jovem com problemas cognitivos em SP, dizem testemunhas

Cristian Miranda da Cruz tinha 20 anos (Foto: arquivo pessoal)

Segundo relatos, Cristian Miranda da Cruz e outros seis garotos foram vítimas de quatro policiais que buscavam outro rapaz, que havia mexido com a namorada de um dos PMs em um bar da região

no Ponte Jornalismo

Cristian Miranda da Cruz, 20 anos. Será para sempre lembrado pelo bom humor e pela lealdade aos amigos no extremo da Zona Sul de São Paulo. Foi, inclusive, por isso que acabou morto, denunciam testemunhas ouvidas pela Ponte Jornalismo. Tentando ajudar os amigos de infância, ele foi torturado e assassinado a tiros por volta das 4 horas da última terça-feira, 12 de janeiro, no Jardim Monte Azul, próximo à estação Giovanni Gronchi do Metrô. Os criminosos, segundo os relatos: policiais militares que há anos frequentam e são amigos do dono de um bar/pizzaria localizado na avenida Tomás de Souza.

Esse estabelecimento comercial está sempre cheio. Toda segunda-feira, serve churrasco gratuitamente aos clientes, que pagam só a consumação em bebidas alcoólicas. Na noite do dia 11, quando ocorria o tradicional evento, vários policiais militares, de folga, estavam lá. De acordo com as testemunhas, tudo corria bem. Até que um garoto da comunidade mexeu com uma mulher. Essa mulher era companheira de um desses policiais, que foi tirar satisfação com o rapaz. O jovem, que não sabia que a moça estava acompanhada, muito menos que o homem era um PM, discutiu e o chamou para brigar.

“Eu não brigo com ninguém”, teria dito o policial, por volta da 1 hora do dia 12. E foi embora. Voltou três horas depois. Acompanhado de outros três homens. Perguntaram no bar onde aquele rapaz morava e receberam as indicações. Foram atrás. Entraram na favela onde o jovem vivia pela rua Vitalina Grassman. Lá, encontraram sete rapazes bebendo cerveja. Entre eles, não estava o que mexeu com a mulher do PM – com medo, ele já havia fugido da comunidade. Armados, os quatro homens teriam se apresentado como policiais. Daí em diante, contam as testemunhas ouvidas pela Ponte, teve início uma sessão de tortura.

“Chute, porradas, ferimentos com garrafas quebradas, com canivete”, afirma uma das vítimas, que não vai ser identificada pela reportagem por medida de segurança. “Teve um dado momento que o Cristian tentou dizer pra eles que não precisavam bater mais. Que ele conhecia o rapaz [pivô da briga] e que tinha até pagado uma bebida pra ele horas antes, mas que ele já não estava mais na favela. Daí, eles começaram a liberar os rapazes um por um e seguraram o Cristian por último. Depois que todos fugiram, eles atiraram nele”, diz. “Tenho a certeza de que ele morreu pra acabar com a tortura que ele e os amigos estavam sofrendo”, complementa outra testemunha do caso.

Feridas

Os PMs passaram canivete no pescoço e nas orelhas deste rapaz (Foto: arquivo pessoal)

“Ele sempre quis trabalhar, mas nunca trabalhou porque tem problema mental”, diz Cláudia Miranda, de 48 anos, tia do garoto, chamado carinhosamente pelos amigos como “Gatão da Vila”. Com problemas cognitivos, Cristian pensava e agia como um adolescente de 15 anos, de acordo com a família. “Era um menino maravilhoso. Todo mundo gostava dele. Saiu um ônibus lotado pra se despedir dele no cemitério. Lembro que a gente conversava, eu podia dar bronca nele, ele nunca me desrespeitou. Vai fazer uma falta grande aqui na Terra. Mas o céu ganhou mais um anjo”, lamenta Cláudia.

A reportagem localizou um dos amigos de Cristian, que por medo fugiu da favela onde sempre morou, abandonando a família e os amigos. Ele relata que foi torturado pelos quatro policiais. “Com o canivete no meu pescoço, eles falavam que iam me estuprar, me matar e depois jogar no rio Pinheiros. Que lá era o lugar de preto favelado”, diz. Um outro amigo que também estava no local permanece na região, porque não tem para onde ir. “Todo mundo conhece esses caras aqui. Por isso, ninguém vai dar o rosto à tapa. A gente tá com medo de morrer”, afirma.

Quem deu “o rosto à tapa” no velório de Cristian, que aconteceu no cemitério Jardim São Luiz, na Zona Sul, teve de prestar esclarecimentos a dois policiais militares, um homem e uma mulher, um deles de traços orientais, segundo relatos. Uma fotografia tirada por um dos presentes (veja abaixo) mostra que eles chegaram ao local na viatura M-01102 (do 1º Batalhão da Polícia Militar, em Santo Amaro). “Tinha outros dois velórios acontecendo na hora. Foram direto na mãe dele e no irmão dele, que também estava com ele na hora do ocorrido. Queriam saber se eles conheciam os assassinos”, afirma uma mulher que foi ao enterro.

Viatura

Segundo relatos, policiais do 1º BPM, de Santo Amaro, foram até o cemitério interrogar a mãe e o irmão de Cristian (Foto: arquivo pessoal)

A atribuição de interrogar suspeitos ou testemunhas para esclarecer um caso é da Polícia Civil. Para o ouvidor da Polícia de São Paulo, Julio Cesar Neves, é, no mínimo, constrangedor policiais militares irem ao enterro de alguém investigar uma família, que está fragilizada. “Nós vamos oficializar a Corregedoria da Polícia Militar e a própria Polícia Militar para saber quem mandou fazer isso e por que mandou fazer isso, já que a família se sentiu intimidada”, disse.

Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP), que atualmente é comandada por Alexandre de Moraes, afirmou por telefone que estava apurando o caso e que poderia responder “em um minuto ou em dez horas”.

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