13 de maio: Liberdade é lembrar

“Não queremos esmolas: queremos direito. A abolição da escravatura não é um problema para mendicantes, mas para homens que pensam e estudam. A sua órbita não pode ser medida pela circunferência das moedas fidalgas; ela abrange todo o futuro da pátria” (Trecho do artigo “O que nós pensamos”, escrito por José do Patrocínio e publicado na Gazeta da Tarde em 12 de maio de 1884).

Quando maio vem chegando, traz consigo um grito cantado lá longe no fundo de mim: “treze de maio não é dia de negro, não é dia de negro, não é dia de negro…” Esse ano, em que se completam 130 anos desde a abolição da escravidão no Brasil, o canto volta. E volta porque ainda somos minoria no ensino superior e em cargos de liderança; porque, entre os pobres, somos maioria; porque, entre a população carcerária, nossos números só crescem; porque quando estávamos chegamos mais longe na luta por igualdade, nossa vereadora foi morta (presente!).

Todo dia, quando saio de minha casa no centro do Rio de Janeiro e caminho até meu trabalho, na Praça Mauá, eu vejo nos olhos dos meus que vão pelo caminho, ou que estão, literalmente, pelo caminho, à margem – mulheres ajeitando nervosamente o cabelo pra caber, trabalhadores de olhos baixos, o senhor sozinho no bar, quase meio dia, a branquinha abrideira, cada rapaz bonito fazendo nada, a vida sem ar, sem água nos olhos da gente, vai mais um puxando carroça, somos todos marronzinhos – eu não vejo a liberdade abrindo as asas sobre nós.

O coração fica escravizado, como no verso de Cartola.

Entretanto, desatar o nó que estreita o espaço de ser – pessoa, bicho livre, amor – é um exercício que depende, antes de tudo, da reconquista da memória. Preto, preta, nós inventamos pirâmides, por que estamos tentando reinventar a roda? Porque a gente perdeu a receita da Vovó.

A tristeza que nos assalta na véspera do treze vem, sobretudo, da falta de memória sobre o processo de luta que desencadeou a abolição. É, luta sim. Teve luta. Teve jornal, teve conferência pública pelo Brasil inteiro, teve gente na rua, teve briga, teve atentado. E depois teve abolição. Mas o que é que a gente sabe sobre isso?
Como quase tudo que nos chegou até agora pelas letras da historiografia, a narrativa sobre o que foi a abolição também foi construída pelas mãos da branquitude. Por isso, ressignificar o nosso treze e enxergar a abolição como conquista, como resultado de uma luta que, por meio da iniciativa de pessoas como José do Patrocínio, Luiz Gama, André Rebouças e outros homens negros, além das inúmeras mulheres negras que participaram dessa luta mas que se encontram ainda sombreadas pelo machismo que perpassa os registros historiográficos, em silenciamento que se acentua no cruzamento com o racismo, é se propor a uma abertura de visão que situe a comunidade negra como agente de suas próprias transformações.

Assim, se por um lado o processo abolicionista é muitas vezes mencionado como insatisfatório, inconcluso, já que não ofereceu meios de promoção de igualdade material entre os libertos e os demais cidadãos, por outro lado esse mesmo processo moveu e foi movido por muitas histórias de pessoas negras que transformaram a abolição em um objetivo de vida, conseguindo convencer a opinião pública da necessidade de sua ocorrência e, assim, gerando a instabilidade que certamente influenciou a promulgação da Lei Áurea.

Acredito que reconstituir esses passos e honrar essa memória seja uma forma de dar prosseguimento a essa luta, nas vias que já existem e das quais nos esquecemos, nas que ainda não temos acesso e nas que ainda precisaremos inventar. Se a abolição foi uma obra inacabada, ainda podemos gritar por sua conclusão, incomodando a quem for necessário incomodar e exigindo direitos. Liberdade é lembrar.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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