Ceará acabou com a escravidão há 4 anos
Medida repercutiu intensamente na Corte e estimulou o abolicionismo em outras províncias
Nas duas últimas décadas, a idéia de libertação dos escravos foi aos poucos se irradiando para o interior do Brasil, motivando vários segmentos da sociedade, desde simples jangadeiros e donos de barcaças no Nordeste, que se recusavam a participar do transporte de cativos, a jornalistas, poetas, escritores e políticos que abraçaram a causa com entusiasmo. Na Província cearense, o fim da escravidão foi proclamado há quatro anos. O Ceará assumiu, no dia 25 de março de 1884, a responsabilidade histórica de proclamar a extinção do trabalho escravo em todo o seu território. A iniciativa pioneira repercutiu intensamente na Corte e nas províncias, reforçando os movimentos que já começavam a tomar corpo em outras partes do país, como Amazonas, Bahia e Paraíba.
A grande festa da abolição no Ceará reuniu a população da capital, na Praça Castro Carreira. Canhões da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção reboaram e os sinos repicaram. Um grande desfile atravessou a cidade antiga, desde a Rua 1º de Março até o passeio público.
Victor Hugo
Em meio às manifestações, o presidente da Província, Sátiro de Oliveira Dias, declarou em tom solene: “Para a glória imortal do povo cearense e em nome e pela vontade desse mesmo povo, proclamo ao país e ao mundo que a província do Ceará não possui mais escravos”.
O abolicionista José do Patrocínio, que se encontrava em Paris dias antes do banimento da escravidão no Ceará, enviou carta ao escritor Victor Hugo comunicando que uma província brasileira estava prestes a ser considerada liberta do cativeiro. Ele pedia ao poeta uma palavra de animação, um conselho, que servisse de encorajamento ao Imperador Dom Pedro 2°, no sentido de engajar-se na campanha pela abolição.
O grande pensador francês, na resposta a Patrocínio, considerou “grande novidade” o gesto dos cearenses e reforçou que com a iniciativa libertadora “a barbárie recua e a civilização avança”. Embora a luta final tenha se dado na cidade de Fortaleza, foi no interior da província, na pequena vila de Aracape, que logo depois se chamaria Redenção, que a Sociedade Cearense Libertadora liderou a primeira grande campanha pela abolição.
Os jangadeiros também tiveram papel decisivo no processo cearense de abolição da escravatura. Em 27 de janeiro de 1881, tendo
à frente Francisco José do Nascimento, conhecido como “Dragão do Mar”, os jangadeiros firmaram sua posição: “No porto do Ceará não se embarcam mais escravos!”. Com esta atitude, eles conseguiram de fato abolir o tráfico de escravos na província.
Assim como ocorria no Ceará, a luta pela abolição agregou não apenas figuras de expressão nas províncias e na Corte. Militares
recusavam-se a perseguir escravos fugidos; mascates ajudavam na distribuição dos panfletos a favor da abolição; ferroviários escondiam negros nos trens ajudando-os nas fugas.
Os negros livres
Movimento abolicionista se espalhou pelas províncias
A Sociedade Emancipadora Amazonense, fundada em 1870, cumpriu papel decisivo na campanha libertadora na Província do Amazonas. A 24 de abril de 1884, a Assembléia Provincial autorizou o governo a despender 300 contos com alforrias. A 24 de maio foi reconhecido oficialmente que Manaus não tinha mais escravos. Em Pernambuco, a luta contou com os nomes de José Mariano, João Ramos, Gomes de Matos e outros que criaram o Clube do Cupim. O movimento conseguiu minar a força dos escravocratas. As barcaças pernambucanas também apoiaram a fuga de escravos.
Na Província da Bahia, o movimento ganhou a adesão da imprensa de Salvador, que decidiu não mais publicar anúncios de fuga, compra e venda de escravos. Pessoas simples, como Manoel Roque, negro e operário, e personalidades, como Castro Alves, deram grande força ao movimento que começou a se articular em 1870.
Em Goiás, o movimento chegou a causar conflitos, mas nos meses que antecederam a assinatura da Lei Áurea a escravidão estava
quase extinta em toda a província. No Rio de Janeiro, houve embates violentos, em especial em áreas onde a lavoura cafeeira se expandiu. A mobilização cresceu em meados de 1870. Nesse ano, um grupo de parlamentares lançou campanha pela abolição
da escravatura. No final de 1887, já ocorriam alforrias espontâneas em toda a província. Em São Paulo, diversas cidades libertaram seus escravos no ano passado. Em São Carlos, o fim do cativeiro foi proclamado em dezembro. No Rio Grande do Sul, o movimento comemorou a libertação da capital em 1884. Com um número menor de escravos, em relação às demais províncias, o Paraná também se engajou na luta, e antes da lei, cidades como Porto de Cima já estavam livres da escravidão.
Mossoró se destaca como cidade pioneira
A força do movimento abolicionista logo atingiu Mossoró, que abraçou a causa com entusiasmo – especialmente a Loja Maçônica 24 de Junho. A cidade comemorou em grande evento, no dia 30 de setembro de 1883, o fim da escravidão. Naquela ocasião, o líder da Sociedade Libertadora Mossoroense, Joaquim Bezerra da Costa Mendes, fez uma declaração histórica.
– Mossoró está livre: aqui não há mais escravos!.
O exemplo dessa cidade passou a ser seguido por comunidades do interior da Província do Rio Grande do Norte. Açu libertou seus escravos em 24 de junho de 1885; depois Carnaúba, em 3º de março de 1887; e, logo a seguir, Triunfo, em 25 de maio de 1887. Natal não possuía mais escravos no início deste ano.
No Piauí, em 1870, o jornalista David Moreira Caldas iniciou ardorosa campanha abolicionista pela imprensa, fundando o jornal Oitenta e Nove, que em sua primeira edição, de 1º de fevereiro de 1873, “profetizou” a proclamação da república brasileira no centenário da Revolução Francesa, no próximo ano, ou seja, em 1889.
Reparação aos ex-escravos precisa ser discutida
Não faltaram discursos de abolicionistas como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Luís Gama e Ruy Barbosa defendendo a necessidade de oferecer oportunidades para integrar os ex-escravos à sociedade. A grande dívida para com os escravos libertos deve ser saldada, para que se possa construir uma sociedade justa e igualitária.
Neste momento em que o Brasil comemora a assinatura da Lei Áurea, alguns abolicionistas colocam em foco a preocupação diante do quadro ainda nebuloso que envolve as conseqüências de um processo que era inevitável diante de séculos de domínio sobre as
populações negras, e que não foram contempladas com nenhum tipo de compensação.
Em razão disso, é lícito prever que a pauta de debates do Parlamento, neste final do século 19, deverá incluir propostas visando contemplar, de alguma forma, os ex-escravos e seus descendentes. É possível até que essa discussão não tenha fim na próxima década e termine se estendendo pelo século 20, mas deve-se ter em vista que a reparação que precisa ser atribuída aos ex-escravos e sua gente não se confunde com qualquer tipo de dávida, por representar, isto sim, um legítimo direito.
Ao longo da luta pela abolição foram discutidas propostas nesse sentido, como a criação de colônias agrícolas para os libertos, a desapropriação de terras não exploradas e o desenvolvimento da agricultura. É mister que se estudem ainda outras formas de reparação, como oportunidade de emprego na cidade e acesso à educação, conferindo dignidade ao indivíduo.
Fonte: Transcrição do documento em PDF chamado “Encarte Abolição” publicado pelo Senado.