Aceitar a dor. Quando banhar-se em lágrimas cura as feridas mais profundas. – por: Aline Matos Rocha

Para muitas pessoas a dor é uma opção. Olhando para minha própria vida, percebi que se trata de uma questão de vida ou morte. De fato, ao longo da minha vida, a dor tem sido um tema importante, do bebê chorando para comer até o sentimento de uma profunda tristeza [gerada] por perdas quando cresci. Minha primeira recordação de aflição profunda foi quando era pequena, com cinco ou seis anos de idade. Um dos meus amigos morreu. Fiquei tão chocada e confusa com a coisa toda, especialmente quando me disseram que nunca mais iria vê-lo fisicamente. Chorei por um longo tempo, e não queria entrar na minha cabeça que o meu amigo tinha morrido. Cada dia tinha a esperança de jogar com ele, mas ele não estava lá. Minha comunidade recordava-me suavemente, “lembra-se que ele morreu?”. Apoiaram-me e choraram comigo. Ainda quando chorei durante muito tempo, mais de um ano, foi aceito como uma parte normal da vida. Nunca me pediram, que deixasse de chorar, pelo contrário: “Você já chorou o suficiente? Já gritou o suficiente?”

De Sobonfu Somé, com tradução de Aline Matos da Rocha.

Para o meu povo, os Dagaras de Burkina Faso, acreditamos que na vida é necessário chorar. Quando choro estou rodeada pela família que me acompanha, e posso chorar o quanto quiser. Experimentamos conflitos, há seres queridos que morrem ou sofrem, temos sonhos que nunca chegarão a concretizar-se, doenças surgem, relações acabam e há desastres naturais inesperados. É tão importante ter formas de libertar essas dores para manter nosso equilíbrio… Deixar de lado uma dor antiga só faz que esta cresça até que sufoque nossa criatividade, nossa alegria e nossa capacidade de nos conectar com os demais. Inclusive pode nos matar. Frequentemente minha comunidade utiliza rituais de dor para curar feridas e nos abre ao chamado do espírito.

Pensava que esta perspectiva sobre a dor era natural para todo mundo, até que cheguei aos Estados Unidos da América. Estava com uma amiga que havia tido um conflito com sua família, e sabia que a situação não era fácil para ela. Um dia a ouvi chorando sozinha no banho. Através da porta, a perguntei se estava bem. Disse, “Sim, estou bem!” Disse a mim mesma, “Meu Deus, há algo aqui que não se encaixa”. As pessoas que deveriam apoia-la não estavam lá. Senti o conflito e me perguntei o que faria minha avó nesta situação.

Quando minha avó morreu, eu era uma adolescente. Estava atravessada por uma dor imensa, devastadora, que não podia superar. Estava bloqueada por um sentimento de raiva, de traição e inclusive de ódio. Perguntava, como pôde minha avó fazer isto comigo? Todo mundo estava se lamentando ao meu redor. Fizeram-me um espaço. Todos se revezavam para se consolarem. Felizmente, as setenta e duas horas de tempo habitual para este tipo de luto se prolongarão durante cinco dias. Quando todo mundo havia terminado, eu ainda assim tinha muito desejo de chorar e as pessoas ainda estavam lá para me acompanhar. Embora tenha começado meu luto tarde nunca me senti incomodada com os que me rodeavam. É natural que as pessoas em torno de você comecem a chorar quando tu fazes. Sabemos que quando você sente dor, não é pessoal, é de todo o grupo. Experimentamos uma sensação coletiva, para que uma pessoa não tenha que suportar sozinha todo o peso do sofrimento.

Muitos anos depois, quando morava nos Estados Unidos da América, tive uma crise de relação. Senti que estava morrendo. Percebi que estava sozinha em minha dor, minha alma, coração e mente continuamente colidiu. Não encontrava uma explicação intelectual para o meu sofrimento. Encontrei muitos alívios em diversas comunidades daqui e quando cheguei em casa todo mundo se juntou a mim em aflição, e de repente, me senti mais leve. Há um preço por não expressar a tristeza. Imagine se você não lavasse as roupas nem banhasse. As toxinas produzidas pelo organismo em um dia acabariam cheirando mal. Isto é o que ocorre com as toxinas emocionais e espirituais. Devemos nos lembrar de que quanto mais essas toxinas aumentam, mais tendemos a culpar ou ferir aqueles que nos rodeiam. Ninguém ataca outro com alegria: quando alguém machuca ou ataca o outro é porque está muito ferido ou angustiado.

Pode haver tanta tristeza que crescemos insensíveis às emoções ignoradas e soterradas que carregamos em nossos corpos. A dor e a mágoa não expressada doem em nossas almas, e está diretamente ligada ao nosso sentido geral de seca espiritual e tumulto emocional, para não mencionar as muitas doenças que experimentamos em nossas vidas. Muitos sofrem de condições médicas que são [estão] relacionadas com a dor. Chorar, seja em privado ou em comunidade, traz muitos benefícios para a saúde cientificamente demonstrada, desde a queda da pressão arterial e os riscos de ataques cardíacos, ao simples fato de ter uma melhor qualidade de vida.

Precisamos começar a ver a tristeza e o luto, não como uma entidade alheia, e nem como um inimigo que devemos expulsar ou encarcerar, mas como um processo natural. Também devemos entender que é bom que alguém expresse sua tristeza.

No mundo de hoje, a maioria de nós carregamos dores que nem sabemos. Fomos educadas/os desde muito pequenas/os para não sentir. No Ocidente, frequentemente nos ensinam que ser bons meninos e meninas passam por resignação e silêncio. As consequências é que inclusive com seus/suas amigos/as mais íntimos e de confiança pode sentir-se como um fardo. Chorar na frente dos outros é muitas vezes um fruto proibido. Somos ensinadas/os que as pessoas que estão mais próximas de nós não têm nenhuma maneira de nos acompanhar quando desmoronamos.

Mesmo nascendo sabendo perfeitamente como chorar. Choramos naturalmente para nos sentir melhor e encontrar alívio. Se existe uma maneira para que todos/as possam chorar abertamente, creio que elas também diminuem a culpa e a vergonha que ocorre em muitas culturas. Quando você está na presença de alguém que está sofrendo, já não se vê a sua cor, é uma linguagem universal. Todos/as sofremos. Não há necessidade de culpar os outros. Culpa e vergonha vem desta incapacidade de expressar nossa tristeza adequadamente. Como podemos pretender ser felizes e amorosos com tanta dor e tristeza?

Acredito que o futuro do nosso mundo depende muito da maneira como administramos nossa dor e tristeza. As expressões positivas da nossa dor são terapêuticas. No entanto, a falta de expressão da nossa dor ou sua incorreta gestão está na raiz da infelicidade geral e da depressão, algo que também provoca guerras e crimes.

Há coisas que podemos fazer na sociedade para ajudar a curar. Podemos começar a aceitar nossa própria tristeza e sofrimento do outro. Podemos ter quartos de luto nos espaços públicos onde a gente possa ir para chorar. Já vi isso acontecer em diferentes comunidades nos Estados Unidos da América e trabalho para eles. As igrejas e demais lugares de culto pode ter quartos para pessoas que precisam chorar. Um dos meus sonhos é transformar lugares nos quais tenham ocorrido horríveis e grandes crimes em santuários de luto onde as pessoas possam ir chorar. Imagino o Memorial Day não como um dia de festa e churrasco, mas como um dia para nos permitir enfrentar nossos atritos diários, as perdas e a dor como comunidade.

Chorar em comunidade oferece algo que não podemos conseguir quando choramos sozinhas/os. Através da validação, reconhecimento e testemunho, o lamento comum nos permite experimentar um nível mais profundo de cura e libertação. Cada um/uma de nós têm um direito humano básico ao amor, a felicidade e a liberdade genuína.

[1] Cujo nome significa “a mantenedora do ritual”. É uma das principais vozes da espiritualidade africana. Percorre o mundo com a missão de curar, compartilhar a rica vida espiritual, as práticas de seus antepassados e a cultura de sua terra natal, Burkina Faso. Autora do livro “The Spirit of Intimancy”, traduzido no Brasil pela editora Odysseus, 2007 como “Espírito da Intimidade”. A mensagem de Sobonfu sobre a importância do aspecto ritual, comunitário, espiritual em nossas vidas como um poder e uma verdade intuitiva tem feito Alice Walker afirmar: “Pode ajudar-nos a reunir muitas coisas despedaçadas em nosso mundo ocidental moderno.” É fundadora de Wisdom Spring, Inc. Uma organização dedicada à conservação e a difusão da sabedoria ancestral. Site pessoal: www.sobonfu.com. Este texto foi publicado em Africaneando. Revista de actualidade y experiencias, nº. 09, 2012. www.oozebap.org/africaneando.

Aline Matos da rocha, filha de Ana da Rocha Matos e Lauro Batista da Rocha, Sou graduanda em filosofia na Universidade de Brasília. Integro o Programa Afroatitude (UnB), Luto por uma (re) significação, um (re) aprender a ver o mundo.

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