“Sims era um salvador ou um sádico? Depende da cor das mulheres que você pergunta”

Quem faz a pergunta e resposta que dão título a este texto é a pesquisadora Harriet Washington no seu estudo sobre racismo na saúde nos Estados Unidos da América que gerou como resultado o livro Medical Apartheid (2007).

Por  EMANUELLE GOES, no Cientistas Feministas

Yeboah-Kodie and others were sprayed with red to signify women’s pain after surgeries. (Creditos da imagem: Howard Simmons/New York Daily News)

 

No último mês de abril ativistas e militantes do movimento de mulheres negras dos EUA tiveram uma vitória simbólica, que da estátua de Dr. Sims foi removida do Central Park, Nova Iorque, chamado de “pai da ginecologia moderna”o cirurgião que utilizava as mulheres negras escravizadas como cobaias nos seus experimentos. No entanto, infelizmente, não foi somente Sims que, na história da medicina e da saúde, utilizou os corpos negros para realização de experimentos, fazendo-os cobaias da humanidade.

Estudo da Sífilis Não-Tratada de Tuskegee (Alabama/EUA) foi também um dos casos de uso da população negra como cobaias. Durante o período de 1932 a 1972, foi realizado um ensaio clínico no qual 399 homens negros com sífilis foram usados como cobaias na observação da progressão natural da sífilis sem medicamentos. Os doentes envolvidos não eram informados sobre seu diagnóstico e jamais deram seu consentimento para participar da experiência. Eles recebiam apenas informação que eram portadores de “sangue ruim”, e que se participassem do programa receberiam tratamento médico gratuito, transporte para a clínica, refeições gratuitas e a cobertura das despesas de funeral.

No Brasil um dos casos mais emblemáticos tem relação com o controle de natalidade da população negra, em Salvador (Bahia). O Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana (CEPARH), criado em 1986, e dirigido pelo médico Elsimar Coutinho na Bahia, fazia campanhas sobre controle de natalidade a partir de uma perspectiva eugênica. Entre os seus materiais de divulgação, tinham outdoors com fotos de crianças e mulheres negras com os seguintes dizeres: “Defeito de Fabricação”, para convencer a população baiana da necessidade do controle da natalidade (A questão da saúde reprodutiva e o feminismo negro no Brasil). Além disso, no Centro realizava experimentos com métodos contraceptivos hormonais, principalmente os injetáveis, em mulheres negras e pobres sob acusações da falta de informação dos efeitos no corpo e dos riscos no uso do método.

Mas quem era Dr. Sims?

James Marion Sims (1813–1883) foi um médico estadunidense e um pioneiro no campo da cirurgia, conhecido como o “pai da moderna ginecologia“. O seu trabalho mais importante foi desenvolver uma técnica cirúrgica para reparação da fístula vesicovaginal, uma grave complicação do trabalho de parto prolongado em demasia.

Sims usou mulheres negras escravizadas como cobaias no desenvolvimento dos seus estudos. Em seus experimentos realizava cirurgias nestas mulheres, sem o uso de anestesia, pois segundo ele “os africanos tinham uma tolerância fisiológica incomum para a dor”.

Em sua autobiografia, Sims disse que: estava em dívida para com as mulheres escravizadas. Depois que várias operações falharam ele estava desanimado e as escravizadas encorajaram-no a continuar, porque elas estavam determinadas a ter os seus problemas médicos curados. Logo depois de Sims ter feito uma cirurgia bem sucedida de fístula vesicovaginal e fístula rectovaginal em 1849, ele teria reparado com êxito as fístulas de outras mulheres escravizadas. Elas voltaram para seus trabalhos escravos.

Reflexos das práticas racistas na saúde das mulheres negras na atualidade

O sucesso dos experimentos de Sims nas mulheres negras, com reconstituição das fistulas vesicovaginal e fistula rectovaginal (fistulas obstétricas), não se reverteu para as mulheres africanas, pois ainda hoje em vários países da África as mulheres são expostas as fístulas, sendo um dos agravos determinantes da morte materna (Fístula Obstétrica e a violação de direitos).

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a fístula obstétrica afeta mais de 2 milhões de mulheres no mundo, principalmente nos países localizados na África e na Ásia. O perfil de mulheres mais afetadas inclui mulheres e meninas em situação de pobreza, com baixa escolaridade e que na maioria das vezes vivenciam o casamento forçado e a gravidez prematura.

“As mulheres negras são resistentes”, é o que diz o senso comum e vai além disso, pois parece que a prática de Sims ganhou adeptos na atenção obstétrica. Estudos científicos confirmam que os profissionais de saúde utilizam desta informação para definir o uso ou não de analgesia para as mulheres negras, é o que revela a pesquisadora Maria do Carmo Leal e colaboradoras em seus dois artigos “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil” (2017). Neste artigo é evidenciado que as mulheres pretas recebem menos anestesia local (pretas 10,7% e brancas 8,0%) para a episiotomia e o artigo mais antigo “Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001” (2005) revela que as mulheres negras estão mais expostas à não utilização de anestésico no parto vaginal, chegando a quase um terço.

Diante disso, o que temos como responsabilidade hoje é recontar a história da medicina/saúde e a história natural da doença, desconstruir epistemologias racistas, sexistas e colonizadas nas práticas de saúde e construir outras bases epistemológicas que reconheçam os direitos humanos, a diversidade e as diferenças, na esperança que futuramente os atendimentos e os cuidados nos serviços de saúde não sejam estruturados pelo racismo e outras formas de opressões correlatas, que ainda tem sido determinante na forma de adoecer e morrer para mulheres negras e homens negros.

Referências

WASHINGTON, Harriet A. Medical apartheid: The dark history of medical experimentation on black americans from colonial times to the present. 2007.

ESTUDO DA SÍFILIS NÃO TRATADA DE TUSKEGEE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2017. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Estudo_da_S%C3%ADfilis_n%C3%A3o_Tratada_de_Tuskegee&oldid=48573236>. Acesso em: 17 abr. 2017.

MARION SIMS. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=J._Marion_Sims&oldid=51851068>. Acesso em: 19 abr. 2018.

DAMASCENO, Mariana. A questão da saúde reprodutiva e o feminismo negro no Brasil. 2017. https://www.cafehistoria.com.br/a-questao-da-saude-reprodutiva-e-o-feminismo-negro-no-brasil/

LEAL, Maria do Carmo et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública [online]. 2017, vol.33, suppl.1, e00078816.  Epub July 24, 2017.

LEAL, Maria do Carmo; GAMA, Silvana Granado Nogueira da; CUNHA, Cynthia Braga da. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Rev. Saúde Pública,  São Paulo ,  v. 39, n. 1, p. 100-107,  Jan.  2005.

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