Nota do Enegrescência sobre o #Elenão e outros Gol(pe)s – Memorias II

Negro correndo livre
Colhendo, plantando por lá
Se Palmares ainda vivesse
Em Palmares queria ficar.

O ódio do feitor é pegajoso, fecundo
Ele pode emprenhar até mentes mais estéreis
Com seu pênis de chicote.
Os feitores esparramam se gozo
Nas costas dos malungos
Guinés, Ardras, Congos, Agomés, Minas, Cafres
E o sangue jorrou com tanta força
Que em Angola, fui Nagô, irmão de Haussá
Jeje, Tapa e Senty.
O cheiro nauseante do esperma da tortura
Fez com que ficássemos juntos, usando nosso ódio mais comum.”
(José Carlos Limeira. Quilombos. In: Atabaques, 1983)

por David Alves para o Portal Geledés

Marca Enegrescência

Nós, do Enegrescência, projeto literário e educacional, com proposta de enunciação de estéticas negras como forma de proporcionar mudanças estruturais na sociedade brasileira, esta marcada pelo racismo, machismo, sexismo e lgbtfobia, não poderíamos deixar de nos manifestarmos sobre a ascensão do fascismo no Brasil.

O candidato à presidência Jair Bolsonaro, através de suas inúmeras declarações repugnantes, não está sozinho. Ele representa boa parte da população brasileira que possui ódio a negros, mulheres e LGBTQI+. Com uma possível vitória desse candidato, essa parcela se sentirá ainda mais legitimada a cometer violências contra aquelas populações. Desde o resultado do primeiro turno, surgiram inúmeros casos de violência contra opositores desse candidato, incluindo a morte do Mestre Moa do Katendê, em Salvador/BA, importante ícone da cultura negra no Brasil. Tudo isso é resultado da ascensão desse político, que tem incitado a violência durante toda a sua trajetória, inclusive nestas eleições.

Devemos lembrar que o Brasil não é apenas um país que possui a escravidão como resquício, mas uma nação que foi e é constantemente (re)construída por um racismo estrutural, de forma que as instituições oficiais e todos os espaços de poder refletem o sistema de desigualdades e opressões raciais. Quando realizamos uma análise interseccional, percebemos que mulheres negras e transgêneros negrxs estão ainda em menor número, por exemplo, como juízas nos tribunais, como professoras nas universidades e como parlamentares no Congresso.

“Descalços

O tempo
na palma dos dias
ainda o silêncio
das crianças mortas.”
(Louise Queiroz. In: Enegrescência – coletânea poética, Editora Ogum’s Toques, 2016)

A nação brasileira se cala frente ao genocídio do povo negro. Com a eleição de Bolsonaro, esse genocídio pode se intensificar ainda mais, pois o discurso de ódio dificilmente será motivo de vergonha, porque fará parte, de forma escancarada, do discurso institucional. De qualquer modo, mesmo em tempo de golpes institucionais, como o atual momento, não devemos esquecer que a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil, ou seja, o golpe contra a população negra brasileira nunca deixou de existir neste projeto fascista de nação, com bases eugenistas. Na verdade, o fascismo sempre esteve aqui presente, contudo, parece agora estar mais confortável para dissipar o seu veneno. Assim, fazendo uma referência à célebre frase de Sueli Carneiro, entre a esquerda e a direita, somos negrxs! No ano de 2015, o governador da Bahia, Rui Costa, do Partido dos Trabalhadores, afirmou que os seus policiais são como artilheiros em frente ao gol. Essa afirmação foi um comentário do governador, aplaudido por policiais militares, à chacina do Cabula ocorrida naquele ano, na qual o Ministério Público do Estado, com base em laudos periciais, denunciou a execução sumária de doze jovens negros por nove policiais militares. A juíza Marivalda Almeida Moutinho inocentou, à época, dez policiais militares, incluindo um que não estava sendo investigado, mas, mesmo assim, foi “absolvido”. Em agosto deste ano, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, a pedido do Ministério Público, anulou aquele julgamento.

“(…) Dona Maria procurava os seus chinelos. Não os encontrava em lugar algum. Saíra descalça. Subia e descia as vielas da comunidade à procura da sua cria, até que seus pés sentiram um líquido gelado. Deu meia-volta e encontrou a caixa de isopor do seu menino, junto aos picolés já derretidos. Desesperou-se. Mais à frente, próximo à arquibancada do campo de futebol, um dos pés da sua sandália. Esperançosa, continuou a sua procura, até que o viu cantarolando canções-resistência. Marcelinho olhou-a com um ligeiro sorriso na face, enquanto os olhos da sua mãe abriam correntezas no chão de barro vermelho. Não teve tempo de lhe falar das suas angústias. Recolheram seus pertences, e dona Maria os embalou como no dia do seu nascimento (…)”
(Lidiane Ferreira. Cotidiano. In: Cadernos Negros Volume 40, Quilombhoje Literatura, 2017).

É constante a agonia das mães negras em relação à vida dos seus filhos. As mães do Cabula ainda choram. Corpos negros não são bolas para policiais artilheiros chutarem os seus tiros. O governador da Bahia demonstra que a necropolítica não se restringe à direita brasileira. Ademais, o mesmo governador, reeleito neste ano, possui propostas semelhantes às do candidato inominável à presidência, como a militarização das escolas públicas, como suposta melhoria na educação, e o aumento das penas para infratores, como se o encarceramento em massa fosse a solução para a segurança pública no Brasil. Ambas as propostas possuem um viés autoritário e desconsideram os reais motivos da falência da educação e da segurança pública no Brasil, reafirmando uma política racista de combate às drogas, ocasionando nos presídios uma imensa maioria composta por negros e negras encarceradxs e cumprindo vários anos de pena sem o devido julgamento.

“Adágio

Energia
que circula com a adaga,
encruzilhando as águas mais profundas.”
(David Alves. In: Enegrescência – coletânea poética, Editora Ogum’s Toques, 2016)

Desse modo, cabe a nós, negras e negros, não elegermos candidatxs que desejam a nossa morte física e simbólica. Nós, através da nossa ética, estética, filosofia, afeto e política que devemos apontar os caminhos que poderão proporcionar a verdadeira mudança deste país. Neste momento, afirmamos o #EleNão e o apoio estratégico a Fernando Haddad, pelo mínimo de diálogo possível e em defesa da democracia que nos resta.

“Cofres

minha pele é sericina escura
do tear mais nobre
e estampar mais sutil
a minha pele é porta de aço codificada à senha
fortaleza de controle e chave
embalagem lacrada
mas é coberta de renda
tecido fino e transparente
luz para clarear estradas
seta para apontar o caminho.”
(Gonesa Gonçalves. In: Enegrescência – coletânea poética, Editora Ogum’s Toques, 2016)

Saudações Afroliterárias,
Enegrescência – David Alves, Gonesa Gonçalves, Lidiane Ferreira


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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