Deu match: conheça a iniciativa que já doou 800 livros para pessoas negras

Criado por Winnie Bueno, o Tinder dos Livros conecta quem precisa de livros a possíveis doadores

Por Audryn Karolyne, no O Globo

Tinder dos livros já intermediou a doação de 800 publicações para pessoas negras Foto: Arte de Paula Cruz

Letícia Santos não conseguia escrever sua monografia quando chegaram pelo correio dois livros que já tinha perdido a esperança de ganhar: “Ensinando a transgredir”, da filósofa americana bell hooks , e “A parábola dos talentos”, ficção da também americana Octavia Blutler, são frutos da iniciativa Tinder dos Livros , que corre no Twitter e foi criada pela doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Winnie Bueno .

Apesar do nome, o projeto funciona de um jeito diferente do aplicativo de paquera. Aqui, pessoas que estejam interessadas em doar livros procuram Winnie via mensagem direta no Twitter @winniebueno. Quando surge uma outra mensagem, dessa vez de uma pessoa negra que precise de um livro, Winnie envia os dados da publicação e o endereço de quem fez a demanda para o doador em potencial.

— No dia em que recebi os livros, estava muito triste pois não conseguia escrever meu trabalho. O correio chegou, eu corri e era o pacote as obras. Meu dia mudou, me senti muito feliz e agradecida. Quem gosta de ler e não tem como comprar os livrinhos que quer, quando recebe assim na sua casa, se sente a pessoa mais feliz do mundo — diz Letícia.

Winnie Bueno, a criadora do Tinder dos Livros explica a importância da iniciativa:

— Fazer com que os livros cheguem na casa das pessoas, e que elas tenham acesso a um livro novo que chega em suas mãos, é uma iniciativa que contribui sim para o fortalecimento dos processos educativos das pessoas.

A ideia surgiu justamente no dia 20 de novembro, feriado nacional da Consciência Negra, pela indignação de Winnie com o modo como pessoas brancas se colocavam como antirracistas nas redes sociais, mas, na prática, não faziam nada para mudar as desigualdades estruturais do Brasil.

A intelectual e criadora do Tinder dos Livros, Winnie Bueno Foto: Mariana Villa Real/Arquivo pessoal

— Eu postei que seria mais útil as pessoas fazerem algo prático como, por exemplo, doar um livro para uma pessoa negra do que ficarem se colocando como antirracistas no Twitter no 20 de novembro. E, de fato, as pessoas se colocaram à disposição de doar livros. O que a gente percebe é que, muitas vezes, a disposição das pessoas é em teoria. Na prática, ela não acontece — explica Winnie.

Ainda que o projeto enfrente dificuldades, muitas vezes tendo mais pessoas que precisem de livros do que dispostas a doar, já foram cerca de 800 publicações doadas. A iniciativa recebeu o apoio da editora Companhia das Letras, que doou 20 exemplares de ” Americanah “, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie; da Estante Virtual, que contribui com obras raras; do cantor Emicida, que enviou a Winnie 50 exemplares do seu livro infantil “Amora”; e da filósofa, diretora e fundadora do Instituto Geledés da Mulher Negra, Sueli Carneiro, que enviou dez exemplares da sua publicação mais recente, “Escritos de uma vida”. Eles esgotaram em menos de dez minutos.

Para Sueli, que acompanha a trajetória acadêmica e dentro do movimento negro de Winnie há muito tempo, o projeto supre buracos no consumo de livros por parte da comunidade negra, desprezaram pelo mercado editorial durante muito tempo. — Esse projeto é a cara dela, é extremamente generoso e busca aproximar sobretudo a produção de conhecimento elaborada pelas mulheres negras desse público — afirmou.

Demanda por autores negros

Facilitar o acesso a autores negros , que ainda representam uma parte pequena do mercado editorial e cujos livros, muitas das vezes, não estão em bibliotecas públicas, também é um dos pilares do projeto. Para Winnie, que sempre teve acesso aos livros, essa dificuldade se pôs no seu caminho principalmente durante o mestrado, cuja dissertação tratou da filósofa americana Patricia Hill Collins. Além da maior parte dos livros de que precisava serem em inglês, muita vezes, o preço deles era extremamente alto.

— O que impulsionou o Tinder dos Livros foi saber que a leitura, que o acesso aos livros, foi fundamental para a minha constituição como ativista e como uma pessoa negra que é consciente das limitações que o sistema de dominação racista colocou na minha vida. O livro me ajudou muito a entender como essas coisas funcionam e, fazer com que livros cheguem às pessoas negras é uma forma de que essas pessoas também possam adquirir esse conhecimento de forma autônoma. Esse é o cerne do Tinder dos Livros. Essa é a ideia.

Para Sueli Carneiro , o Tinder dos Livros atende a uma demanda reprimida:

— É um projeto que atende a uma demanda que as editoras desprezaram durante muito tempo, mas que acabou sendo revelada por iniciativas como a de Djamila Ribeiro, por exemplo, que mais do que ninguém mostrou que o público vinha insistindo por produções dessa natureza. Os livros que ela tem lançado têm produzido esse impacto sobre as grandes editoras, elas terem que se render à evidência de uma demanda que não está sendo atendida. Há um consumidor negro digno de conhecimento e que deve conhecer seus intelectuais.

Essa falta de autores negros nas bibliotecas também chamou a atenção da bibliotecária e ex-coordenadora geral do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas do Ministério da Cultura, Dandara Baçã, que conheceu Winnie através da Rede de Ciberativistas Negras. Ela recebeu do Tinder dos Livros um exemplar de “Sobrevivendo no inferno dos Racionais MCs”, que pretende ler para empoderamento pessoal e para a escrita de um artigo sobre informação e os Racionais. — Já fiz projeto com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto utilizando os Racionais e foi muito positivo — completou.

Muito além da Web

Não é a primeira vez que uma obra que integrou o processo de troca do Tinder dos Livros chegou até medidas socioeducativas. Winnie conta que uma das histórias que mais mexeu com ela chegou por sua mãe, a ativista dos movimentos sociais Iyá Sandrali,que trabalha na Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE) do Rio Grande do Sul. Ela contou de um adolescente muito fã da série ” Harry Potter ” que queria ler todos os livros, mas não tinha acesso porque nem todos estavam na biblioteca da instituição. A própria Winnie, que quando criança leu todos com a avó, providenciou a coleção.

A resposta do jovem de 17 anos que nunca tinha ganhado um presente tocou Winnie:

— É uma das histórias que mais me tocou, que me mobilizou inclusive a seguir apostando nessa ideia.

O Tinder dos Livros não apenas proporciona obras a pessoas negras, mas também deixa quem ganhou os livros com vontade de um dia ser um doador. Tanto Letícia quanto Dandara pretendem doar quando estiverem em uma situação financeira que as possiblilite.

— Nós pensamos que não vai dar certo, que ninguém vai doar, aí um belo dia chega uma encomenda na sua casa e você nem entende direito. É o Tinder dos Livros agindo. Meu objetivo é, futuramente, ajudar também — conta Letícia.

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