Mulheres negras: 80% das empreendedoras não têm reserva financeira e ‘coronavoucher’ não vai ser suficiente

O receio de perder o emprego e ficar sem renda é o maior medo das profissionais que trabalham para empresas nacionais e multinacionais. A crise atual escancara as desigualdades sociais do Brasil e exige eficiência na distribuição de recursos e crédito

Por Naiara Bertão, do Valor Investe

Getty Images

Esta semana participei como mediadora de um bate-papo on-line para discutir os impactos da crise do novo coronavírus nos pequenos negócios e como os empresários podem ser adaptar para sobreviver. Saí da live realmente agradecida por ser privilegiada: ter um lugar pra morar com supermercado e farmácia próximos, ter um salário para me sustentar, um trabalho para me ocupar, uma geladeira cheia, reserva de emergência em títulos públicos para caso algo dê errado e família/amigos presentes, ainda que virtualmente. A conclusão do papo foi o de que ter fonte de renda e reserva de dinheiro nunca foi tão vital, literalmente.

Apesar de saber que a minha realidade é a de uma minoria no Brasil, isso ficou ainda mais claro quando vi uma pesquisa divulgada na quinta-feira (09) pelo Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), organização que busca acelerar a promoção da igualdade racial no mercado de trabalho. Em parceria com o Empodera, Empregueafro e Faculdade Zumbi dos Palmares, o levantamento considerou a resposta de mais de 200 mulheres negras em 19 estados e Distrito Federal, empreendedoras e profissionais que trabalham para empresas brasileiras e multinacionais. O objetivo era entender como elas estão lidando com o período de crise durante a pandemia da covid-19.

Vamos aos resultados:

Empreendedoras

De acordo com a pesquisa, entre as empreendedoras negras, 79,4% não dispõem de reservas financeiras, enquanto 48% apontam que a principal necessidade é garantir recursos para manter o negócio ativo. Mais da metade (56%) delas afirmam ter custo mensal médio entre R$ 1 mil a R$ 5 mil, orçamento superior à ajuda oferecida pelo governo, de R$ 600, o “coronavoucher”.

“Nossa observação é que, para empreendedoras, a ajuda mensal de R$ 600 oferecida pelo governo é insuficiente para a manutenção dos seus negócios, o que impacta diretamente na sustentabilidade do empreendimento e da sua subsistência pessoal. Isso contextualiza como, no momento atual, estamos no iminente risco de um colapso econômico que atinge de forma contundente essa população específica”, destaca a conclusão da pesquisa.

 

Entre as demais urgências apontadas estão a prospecção com potenciais clientes (21,1%), suporte tecnológico (10,3%), mentorias (7,4%) e apoio psicológico (5,1%), demonstrando que, além da estrutura financeira, também carecem de outros apoios para prosseguirem com seus empregos e empreendimentos.

Fica claro que o dinheiro é fundamental para manter seu negócio em pé, além, claro, de outros apoios importantes para que elas consigam manter seus empreendimentos. Mas, se os empreendedores autônomos, micros e pequenos já sofrem com dificuldade de acesso a crédito – e barato, acessível – quem dirá essas empreendedoras negras.

Segundo o Sebrae, as mulheres negras representam hoje a metade das donas de negócios no país, que soma aproximadamente 9,6 milhões de empreendedoras à frente de um negócio, formal ou na informalidade, como empregador ou trabalhando por conta própria. Somente 21% das empreendedoras negras têm CNPJ, contra 42% das mulheres brancas. A informalidade, infelizmente, é a única alternativa para muitas delas.

Elas já são o menor grupo – 17% dos empreendedores do país são do sexo feminino e negras – e, como se não bastassem contras, elas são as que ganham menos entre todos os outros grupos: em média, R$ 1.384 por mês. Isso equivale à metade do rendimento das empreendedoras brancas (R$ 2.691) e 42% do valor recebido por homens brancos (R$ 3.284).

 

Profissionais de empresas brasileiras e multinacionais

Sobre as profissionais negras que estão alocadas em empresas nacionais e multinacionais, o levantamento aponta que 76,5% têm medo de perder o emprego, enquanto 13,2% temem pela saúde e 10,3% estão receosas com a manutenção de ações de diversidade e inclusão.

 

Entre as principais necessidades, o apoio psicológico lidera com 39,7%.

 

 

E, dessa vez, elas têm medo não porque não são boas o suficiente ou dispensáveis (ou acham que não são, sentimento comum entre as mulheres), mas porque sabem que nem todas as portas que se abrem para uma mulher branca ou um homem, serão abertas a elas. E isso não tem a ver com a escolaridade.

Algo importante da pesquisa: 32,92% das mulheres que responderam à pesquisa possuírem Ensino Superior completo e 29,63% afirmam ter cursado ou estar cursando Pós-Graduação. Apenas 3 respondentes (1,23% do total) disseram que não possuem formação.

“Mulheres negras representam mais de 60 milhões de pessoas no Brasil e sabemos que são 50% mais vulneráveis ao desemprego que as mulheres brancas, segundo estudos do IPEA (2018). Precisamos entender quais são as consequências no emprego e renda desta população diante do cenário da covid-19”, afirma Luana Génot, Diretora-Executiva do Instituto Identidades do Brasil.

Eficiência na compensação

Ainda não dá para prever o estrago de uma pandemia desse tipo nas empresas brasileiras. Mas uma coisa é certa: vai ter sangue e, principalmente, de quem tem menos condições financeiras. E as mulheres negras saem em desvantagem na largada por problemas históricos, culturais e sociais que patinamos em resolver.

Dando à Luana o lugar de fala:

“Não queremos apenas apresentar resultados, mas sim possibilitar que o mapeamento da situação de mulheres negras no cenário da pandemia da covid-19 gere ações concretas que as apoiem na redução dos possíveis impactos para suas carreiras e negócios. Seja por meio da obtenção de auxílio financeiro, acesso a informações ou de parcerias que não apenas atenuem os problemas detectados, queremos que impulsionem o seu crescimento futuro”, diz ela.

E finalizo com uma reflexão. O Brasil é grande e desigual. A necessidade de um não é a mesma de outro. Nunca tivemos tantos dados e possibilidades de pesquisas como essa em larga escala e, mais do que nunca, essas informações deveriam ser usadas para embasar a política de distribuição e compensação dos recursos durante a crise. Eficiência e precisão podem ser divisores de águas entre a sobrevivência e a morte. O covid-19 afeta de formas diferentes as pessoas e há grupos financeiramente ainda mais vulneráveis aos seus efeitos.

Se algo mais cirúrgico não for feito para prevenir a exposição desses grupos de risco – em especial, as mulheres negras -, quando essa situação passar, infelizmente só veremos as feridas ainda mais expostas, as desigualdades ainda mais desiguais. Se já é difícil lutar por equidade estando degraus abaixo, se as pessoas mais vulneráreis caírem mais, subir ao topo será ainda mais hercúleo.

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