‘Nunca foi pela máscara. Foi racismo’, desabafa delegada que foi barrada em loja de shopping de Fortaleza

Ana Paula Barroso é titular da Delegacia de Proteção a Grupos Vulneráveis do Ceará; gerente da Zara foi indiciado por racismo após investigadoras ouvirem testemunhas e analisarem câmeras de segurança

A ansiedade pairava no ar. No sétimo período da faculdade, a quase advogada estava prestes a conseguir um estágio como auxiliar de promotor de Justiça. Enquanto aguardava a entrevista, a garota de Juazeiro do Norte não pôde deixar de notar a presença da outra candidata, loira e de olhos claros, talvez tão nervosa quanto ela na antessala do Ministério Público do Ceará. Diante das duas jovens, uma secretária, enquanto comandava o entra e sai no escritório, dava as instruções.

— O promotor já vai atender — avisou e, olhando apenas para a garota do Cariri, no Sul do estado, completou: — O trabalho aqui é muito simples: é só manter a sala, que está cheia de poeira, limpa e servir o café.

Ana Paula Barroso engoliu em seco, mas ali era apenas mais um obstáculo para uma jovem negra, filha de pais separados, criada pela avó açougueira. A futura delegada de polícia — que foi alvo de discriminação numa loja da Zara em shopping da capital, onde passou a viver, obteve a vaga imediatamente. Deixou a sala do promotor equilibrando uma pilha de documentos e com uma resposta na ponta da língua. Antes de se dar conta da gafe, carregada de preconceito, e se desculpar por imaginar que ela era a faxineira, a secretária ainda perguntaria: “menina, onde você vai com esses processos todos?”.

— Eu disse que ela estava desculpada, mas que não era nenhum demérito trabalhar na limpeza, muito pelo contrário — conta, lembrando que a outra jovem seria contratada para serviços gerais. — Ela ficou sem resposta.

Quinze anos depois — e com outros percalços semelhantes no caminho — a delegada Ana Paula, aos 39 anos, enfrenta uma ação de racismo contra a gerência da loja. Logo ela, titular da Delegacia de Proteção a Grupos Vulneráveis do estado. E que nem gosta de roupas de grife: apenas perambulava pelo centro comercial, tomando seu primeiro sorvete oito meses depois de uma cirurgia bariátrica.

Barrada na porta, em vez de dar carteirada, prática nacional que virou verbete nos estudos do antropólogo Renato DaMatta, a delegada foi procurar as autoridades. Do shopping. Apenas o quarto segurança abordado por ela a acompanhou de volta à loja. Lá, com sorvete ainda na mão, ouviu que foi convidada a sair porque a máscara, item obrigatório durante a pandemia, estava fora do lugar. Outros clientes nem usavam a proteção, mas circulavam pelas araras do estabelecimento:

— Nunca foi pela máscara. Foi racismo.

Nessas horas, Ana Paula lembra da avó, Alaíde, que morreu aos 85 anos e ensinou que, na realidade em que viviam, a sala de aula era mais importante do que uma arma na mão da delegada de polícia. “Seu único cartucho é o estudo”, recorda a policial, que cursou a faculdade de Direito em Crato, vizinha a Juazeiro.

A enfermeira Gerluda Paiva, de 54 anos, lembra que a a amiga delegada, ao se mudar para a Região Metropolitana de Fortaleza, morou com os tios e de favor na casa dos amigos . Num ambiente machista por natureza, Gerluda observa que as atitudes de Ana Paula não a surpreendem.

— Veio de uma família muito humilde e venceu, mas nunca perdeu a essência, o lado humano que tem de perseverar e se doar — diz.

Ana Paula entrou para a Polícia Civil em 2006. Foi inspetora até 2013, quando, promovida a delegada, em novo curso, foi transferida para Ipu, no interior. Depois, foi titular em Cascavel, para então chegar à Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente e mais tarde de Proteção ao Idoso, até ocupar o cargo atual.

Ana Paula é descrita como discreta, mas, entre amigos, fala pelos cotovelos. A delegada Eva América, diretora do Departamento de Gestão da Polícia Civil, que trabalhou com ela na especializada voltada para menores, conta que quase perdia o curto intervalo de descanso durante os plantões.

— No alojamento, a conversa se alongava e a gente via que se não parasse não ia dormir. Ela sempre dizia: “amiga, só mais uma história”. Acabava que chegava mais uma ocorrência e nada de descanso — ri.

A delegada é conhecida por não se valer do posto para obter vantagem, como quando foi abordada em uma blitz. Um soldado da PM pediu a identificação da delegada, que lhe entregou a carteira de motorista. Embora Ana Paula vestisse uma camisa da Polícia Civil, ele quis a identidade funcional. Ela atendeu. Só perdeu a paciência quanto o agente exigiu porte de arma, que normalmente os policiais guardam em casa. Ana Paula se identificou como delegada e pediu que o PM também mostrasse seu próprio porte de arma. Ele recuou e ela seguiu viagem.

No dia em que foi convidada a deixar a loja, a bem-humorada Ana Paula custou a entender o que acontecia, mesmo tendo passado por situações constrangedoras muitas outras vezes.

‘Zara zerou’

Esta semana, a polícia divulgou que investiga um dispositivo no estabelecimento que alertava os funcionários da presença de pessoas negras ou malvestidas. O sistema teria sido instituído pelo gerente, Bruno Filipe Simões Antônio, português de 32 anos. O mesmo que, de acordo com a delegada, a convidou a deixar o local.

— A cereja do bolo foi a descoberta do código “Zara, zerou” (sistema de alerta). Baseado em quê eles ativariam esse código para as pessoas? Só chego à conclusão de que fui expulsa por conta da minha cor e da minha aparência de quem não teria poder aquisitivo para comprar ali — diz ela que se orgulha de ter agido como cidadã, com base em seus valores de vida, e não como autoridade. — Foi como se naquele momento eu tivesse esquecido que era policial.

Embora não tenha dito que era delegada de polícia, um dos seguranças, que já tinha enviado casos para ela, a reconheceu. Ao retornar à loja com ele, houve uma mudança radical na recepção.

— O gerente me pediu desculpas três ou quatro vezes. Mas tive certeza do preconceito quando ele negou ter sido preconceituoso, já que tinha amigos gays, negros, transexuais. E terminou dizendo: “Todo mundo erra, a senhora nunca errou?”.

Uma força-tarefa de delegadas de defesa dos direitos da mulher foi formada para investigar o caso e pediu as imagens de todas as câmeras do shopping. Foi possível constatar gestos e indelicadezas que Ana Paula havia esquecido. No inquérito, concluído na terça-feira, Bruno Filipe foi indiciado por racismo.

— Eu ainda estou com dificuldade de sair para um shopping, por exemplo. Isso tudo é desgastante, mas vai além da mulher Ana Paula. Eu fui só um instrumento desse processo, uma referência. Há muitas Anas Paulas que sofreram, estão sofrendo ou vão sofrer episódios como o que eu sofri. Infelizmente, muita gente, sem empatia, minimiza a nossa dor. Racismo é crime.

A Zara afirmou que “é uma empresa que não tolera nenhum tipo de discriminação e para a qual a diversidade, a multiculturalidade e o respeito são valores inerentes e inseparáveis da cultura corporativa”.

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