Denúncia de racismo é sintoma que país precisa expiar culpa pela escravidão

Senhora resgatada em casa de desembargador de SC expõe o servilismo imposto a pobres e negros

As últimas notícias mostram que o racismo no Brasil está praticamente dentro da unanimidade nacional, uma espécie de DNA encrustado na constituição do povo brasileiro, ou seja, está longe de acabar –a não ser que esse povo seja extinto e no seu lugar surja outro bem diferente, sem consanguinidades hereditárias e colonialismo, heranças que ainda hoje enriquecem os beneficiários da indústria da escravidão de séculos passados, sustentando séculos de privilégio branco e exclusão negra.

É difícil nos entendermos por brasileiros enquanto tivermos que presenciar cenas como a do resgate de uma senhora escravizada por 37 anos no seio da família do desembargador Jorge Luiz de Borba, ilustre membro do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

A situação degradante ainda se torna mais relevante quando, dentro das contingências do cárcere residencial escravista, chega ao nosso conhecimento que a vítima, confinada na casa do magistrado desde os 12 anos, é deficiente auditiva, negra e nunca teve acesso à educação formal, ou seja, é analfabeta.

Os depoimentos colhidos de ex-funcionários até agora pelo Ministério Público Federal dão conta das condições de precariedade trabalhista, previdenciária, somando-se à falta de bem-estar social e financeiro, além de privação de liberdade e acesso à família. Uma ex-funcionária revelou que o status da doméstica na casa do magistrado era de “escravinha” ou “mucama”.

Entre o chocante e o pavoroso, juntamos a esse atestado de justificativas do desembargador Borba, que alega não ver qualquer indício de crime, o “inconformismo” da autoridade judiciária catarinense com a operação que resultou no resgate da senhora, à primeira vista, mais envelhecida do que a própria idade que supostamente tem.

Pelos seus conhecimentos no campo do direito, cujo trabalho é atuar em causas processuais, no seu papel como juiz, o desembargador Borba prevarica da função de que está investido, não só por burlar as leis, negando-se a reconhecer o ato criminoso e hediondo, praticando-o de maneira torpe e convicta, não reagindo da mesma forma ao explorar e escravizar uma pessoa indefesa diante de mulher e filhos, descumprindo questões de ordem trabalhista e de assistência social.

Esse tem sido tema recorrente pautado por mim aqui neste mesmo espaço da Folha. Infelizmente, já reconheceu o Ministério Público do Trabalho, não há região do país que não ocorra crime de escravidão, na maioria contra pessoas pobres e negras. De 1995 a 2022, de acordo com dados fornecidos pelo MPT, “mais de 60 mil pessoas foram resgatadas em trabalho análogo à escravidão”.

Esse mal precisa ser combatido pela raiz, com ato processual e perdas de função pública e patrimônio, revertido às vítimas.

A premiada escritora carioca Eliana Alves Cruz atualiza esse tema do “trabalho doméstico” em um romance espetacular –”Solitária” (já analisado por nós aqui no espaço da coluna). Com sensibilidade e grande talento, o mesmo que lhe conferiu o Jabuti no ano passado, expõe um retrato sem retoques dessa situação no Brasil, sob o prisma da violência e da ofensa aos direitos humanos.

Em uma passagem brilhante da história, Eunice, a filha da personagem principal do romance, que vive fora do ambiente opressivo da senzala residencial doméstica, diz para Mabel, a mãe, algo que aponta para a direção da denúncia extraída da casa do desembargador Borba: “Mãe, a senhora precisa se libertar dessas pessoas. A senhora não deve nada pra elas. Não tenha medo de encarar esse povo que nunca limpou a própria privada”.

Infelizmente, a personagem desta crônica, com o nome aqui ocultado, de propósito, por ser ela a vítima, não o seu agressor ou escravizador, não teve a mesma sorte de ter uma Eunice para mostrar, como uma luz, o seu caminho de libertação.

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