Finados: podia ser a minha mãe, que loucura!

Foto: Gabriel Brito/Correio da Cidadania

Por Douglas Bechior

Há uma morte branca que tem como causa as doenças, as quais, embora de diferentes tipos, não são mais que doenças, essas coisas que se opõem à saúde até um dia sobrepujá-la num fim inexorável: a morte que encerra a vida. A morte branca é uma “morte morrida”. Há uma morte negra que não tem causa em doenças; decorre de infortúnio. É uma morte insensata, que bule com as coisas da vida, como a gravidez e o parto. É uma morte insana, que aliena a existência em transtornos mentais. É uma morte de vítima, em agressões de doenças infecciosas ou de violência de causas externas. É uma morte que não é morte, é mal definida. A morte negra não é um fim de vida, é uma vida desfeita, é uma Átropos ensandecida que corta o fio da vida sem que Cloto o teça ou que Láquesis o meça. A morte negra é uma morte desgraçada. (BATISTA; ESCUDER; PEREIRA, 2004, p.635)

Pobreza e religião caminham juntas desde sempre, ao menos para os fiéis, para os povos que compõem as igrejas. E a vida, e a morte, e a vida após a morte, encontram novos significados, quase sempre em busca do conforto diante da vida real.

Poucos poetas retrataram tão bem a dura realidade das periferias brasileiras, como fizeram Racionais Mc’s. Entre a denúncia da realidade e a valorização da identidade negra e periférica, a busca incessante pela “fórmula mágica da paz”. E em muitos versos, a pintura do quadro da dor e do sofrimento daquelas que ficam e que choram nos velórios diante do desespero da perda, quase sempre famílias negras, quase sempre mães pretas.

A morte é, como sabemos, a grande certeza da vida. E poderia sim, ser vista, entendida e significada de uma forma diferente como a temos. Uma morte decorrente de uma vida bem vivida, de uma vida de prazeres, de uma vida repleta de direitos e humanidade que chegasse ao seu fim como uma passagem natural, como o fim de um ciclo, com a menor dor possível, com dignidade e cuidados. A morte poderia ser, em regra, uma experiência que deixasse na consciência dos que ficam, o acalanto do “fiz tudo que podia ter feito”.

Mas não.

Não é essa a relação que temos com a morte. A vida real do povo mais pobre, da população que ocupa as periferias e do povo negro jamais ofereceu condições para a oferta das chamadas mortes naturais, da “morte morrida”. A escravidão e a democracia para poucos, nos deixou marcas profundas em que a morte sempre esteve relacionada ao castigo, à dor, ao sofrimento, à tortura, à chacina e muitas vezes, à morte sem corpo, sem velório e sem o direito sagrado da despedida.

Para os pobres e principalmente para a população negra, a dor é propositada, prevista. E a condição é precarizada, injusta. E a vida interrompida, encurtada. E a morte prematura, premeditada, naturalizada.

No Brasil, segundo o mapa da violência 2014, a taxa de homicídios é a maior desde 1980. São números de 50 a 100 vezes maiores que a de países como o Japão. Em média, 100 em cada 100 mil jovens entre 19 e 26 anos morrem violentamente a cada ano.

A vitimização dos negros é bem maior que a de brancos. Morreram proporcionalmente 146,5% mais negros do que brancos no Brasil, em 2012. Considerando a década entre 2002 e 2012, a vitimização negra, isso é, a comparação da taxa de morte desse segmento com a da população branca quase triplicou.

Os brancos têm morrido menos. Os negros, mais. Entre 2002 e 2012, por exemplo, o número de homicídios de jovens brancos caiu 32,3% e o dos jovens negros aumentou 32,4%.

Os homicídios são uma das principais causas de tantas mortes. E nessa categoria, destaca-se o papel do Estado e de suas polícias que, ao contrário de proteger a vida, promovem a morte. Em São Paulo, a polícia militar de Geraldo Alckmin matou de julho à setembro de 2014, 150% a mais que no mesmo período do ano passado.

Neste 2 de novembro, finados, respeitemos a dor de todas as cores, mas lembremos que há, neste grande cemitério chamado Brasil, a permanência da desigualdade também na distribuição das covas ou, nas palavras de João Cabral de Melo Neto, da cova medida, a parte que nos cabe nesse latifúndio.

E nossa angustia cantada…

“2 de Novembro era finados. Eu parei em frente ao São Luis do outro lado, e durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as Senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura… Colocando flores sobre a sepultura… podia ser a minha mãe, que loucura…”

Fonte: Negro Belchior

 

 

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