Militante do Coletivo Enegrecer sofre racismo institucional no Procon

Walmyr Junior

Racismo Institucional 

Você percebe a perversidade do racismo quando ele, além de oprimir, tenta transportar a denúncia para outro território. Que o racismo se faz presente em todas as esferas da vida pública e privada, não temos dúvida. Mas, é de se alarmar quando um caso ocorre dentro de um órgão da Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos.  Assim, começa o caso explorado pelo artigo de hoje. Lízia De Boni, servidora pública da Prefeitura Municipal de Vitória, sofreu mais uma vez na pele as opressões e as violências que o racismo promove na população negra.

por Walmyr Junior* no Jornal do Brasil

O que parecia mais um atendimento a munícipes pelo Procon, órgão em que a servidora trabalha, terminou em mais uma reprodução do racismo que a oprime ao longo de 28 anos. Uma denúncia na 4ª Delegacia Policial em Maruípe na tarde de 31/10/2014 foi realizada, conheça a denúncia na íntegra:

“Por volta das 16hs do dia 30/11 chegou ao Procon Municipal de Vitória um senhor alterado por ter chegado após o horário prevista de distribuição de senha. A coordenadora do órgão mostrou a portaria municipal que regulamenta o horário de atendimento, mas fez uma concessão e solicitou a uma funcionária que o atendesse. Durante o atendimento, o munícipe puxou conversa enquanto a funcionária digitava os dados do processo no computador. Ele se referia a um programa de TV sobre o oriente médio e elogiava as feições físicas dos árabes, enquanto manifestava o desejo de que as feições do povo brasileiro “evoluíssem” para um padrão com feições mais europeias. E citando diferentes regiões do Brasil como exemplo, disse que a região sudeste estava já manifestando padrões físicos mais aceitáveis devido imigração italiana. Ele ainda se referiu às redes sociais, que essa semana as pessoas estavam sendo acusadas de xenofobia, racismo e ódio. E que ele DISCORDAVA DA EXISTÊNCIA DO RACISMO. Em dado momento, começou a se referir a um apresentador de um programa de TV da Band. A funcionária continuou o seu trabalho e disse que não assiste TV. O munícipe seguia dizendo que era um absurdo ligar a TV e “dar de cara” com “aquilo”, que era muito feio e se vestia como africano “ o cabelo de tranças horríveis, camisa larga e calça no meio das pernas”. Por fim, manifestou que tinha motivo pra ter medo se cruzasse com “um cara desses” na rua, que depois as pessoas falam que é racismo e ele discorda disso. Ao perceber que o munícipe insistia na conversa, a funcionária interrompeu o atendimento e começaram a discutir sobre o fato.

– Peraí. O senhor vem no meu guichê pra vomitar racismo na minha cara?  

– Não é racismo não. Tô te contando um caso acontecido que eu não concordo.  

– Senhor, eu estou aqui pra falar de Código de Defesa do Consumidor e não sou obrigada a ouvir os comentários racistas do senhor. Por que o senhor está falando isso comigo? Você está falando que o meu povo é feio, que nosso cabelo é feio e que vcs tem que ter medo da gente na rua?  

– Mas é feio mesmo. As pessoas não são obrigadas a ligar a televisão 23h e ver um cara daquele na TV. Até parece que se você tiver passando na rua e encontrasse um sujeito desse, não teria medo.  

– O nome disso é racismo e eu não vou tolerar. Se o senhor falar de celular eu atendo, se não eu vou pedir pro senhor se retirar.  

O munícipe insistiu por diversas vezes em argumentar com adjetivos contra o apresentador negro, sem ouvir o apelo da funcionária.  

– Me desculpe, eu não vou te atender. Se alguém se disponibilizar a atender pode ir. Eu não.  – Vocês vão ter que atender. Está aqui para isso.  

– Não senhor, você chegou após o horário de distribuição de senha e está escrito na portaria que eu não sou obrigada. Posso fazer trabalho interno.  

A coordenadora chegou e pediu para a atendente se acalmar. A atendente se retirou e quando voltou ao ambiente de trabalho o munícipe conversava com a coordenadora sobre o fato ocorrido, insistindo muito que não era situação de racismo. A atendente voltou para o seu guichê, ao lado onde estava o munícipe.

– Essa daí está aí para servir e tem que me atender. Eu sou da justiça federal. Eu não vou pedir desculpas pelo racismo, mas pelo fato ocorrido. Eu tava contando um caso pra ela.  

– Se o senhor tiver que pedir desculpas e falar alguma coisa, tem que falar comigo que fui a atingida. Eu não sou amiga do senhor pra ficar ouvindo caso.

– Eu não vou pedir desculpas pra você, estou falando com ela (a coordenadora). Qual o nome “dessa aí”?  -lizia de boni silva , matricula XXXXX. 

Ele anotou. A coordenadora se manifestou, dizendo que não queria “aquele tipo de conversa” ali e que se a atendente quisesse fazer “aquilo”, era “da porta pra fora” ou que resolvesse na justiça.

“Acabou Lízia. Fica quieta. Acabou”.

A coordenadora pediu que ela se retirasse e que o munícipe permanecesse. A atendente não aceitou, falou que continuaria trabalhando e argumentou que estava na SECRETARIA MUNICIPAL DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA e a coordenadora por ser advogada tinha conhecimento do que era racismo e se fosse qualquer outro crime cometido ali, já teriam chamado segurança.

O munícipe continuava a argumentar. O tempo todo a coordenadora mandava a funcionária se calar e dizia que conhecia as posições políticas dela, mas que ali “não era lugar”. “Tem como você se calar?” “Já estou calada. Estou indo embora.” A funcionária se sentindo constrangida se retirou e o munícipe permaneceu”.

Espera-se que a Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória instale uma comissão para apurar o caso e garanta a integridade de Lízia De Boni, bem como a erradicação de qualquer opressão, seja ela de gênero, orientação sexual, religiosa, de raça dos espaços institucionais, bem como indicam as politicas afirmativas e universais de garantia de vida à população, sobretudo negra. Dizer que a opressão que a servidora sofreu é fruto de qualquer outra situação é uma tentativa de desterritorializar o sistema racista que opera todos os dias e condena negros e negras a condições de vidas indignas e legitimar a violência física e simbólica a que estão submetidos.

 


 

* Walmyr Júnior é professor. Representante do Coletivo Enegrecer no Conselheiro Nacional de Juventude – CONJUVE. Integra Pastoral da Juventude e a Pastoral Universitária da PUC-Rio. Representou a sociedade civil no encontro com o Papa Francisco no Theatro Municipal, durante a JMJ.

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