“Essas pessoas estão me matando”, diz jovem trans sobre polêmica do nome social

Causa de evasão, de constrangimento e desrespeito contínuo, a dificuldade de existir no ambiente escolar faz pessoas trans reagirem à tentativa da bancada evangélica de derrubar portaria do governo federal que prevê direitos como o uso do nome social e uso do banheiro do gênero de identidade

 Por Mel Bleil Gallo , do iG

Bernardo faz apelo para o que deveria ser muito simples, seu direito de existir. Foto: Reprodução
Bernardo faz apelo para o que deveria ser muito simples, seu direito de existir. Foto: Reprodução

Uma sentença de morte. É assim que o estudante da Universidade de Brasília Bernardo Mota, de 18 anos, define a tentativa da bancada evangélica de derrubar uma resolução da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) que garante o respeito à identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais nas instituições de ensino.

“É dizer que cada vez mais eu vou estar excluído e cada vez mais vou ser impedido de existir. Essas pessoas estão me matando. Essa é uma tentativa de me matar”, desabafa o adolescente, cuja família também evangélica decidiu enfrentar as orientações da própria igreja para defender o respeito à sua identidade de gênero. Ao nascer, Bernardo foi designado com o sexo feminino, mas com o tempo passou a se perceber como homem.

A crítica feita pelo estudante tem como alvo um projeto de decreto legislativo apresentado em março pelo deputado federal e pastor Marco Feliciano (PSC-SP). A iniciativa pretende sustar a resolução nº 12/2015, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que estabelece orientações para o “reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização”.

Na prática e com o apoio da bancada evangélica, o decreto revogaria a decisão de reconhecer por identidade de gênero legítima aquela declarada pelos próprios estudantes e não necessariamente a que consta na documentação civil.

Assista ao video com a entrevista que Bernardo deu para o iG:

“É muito curioso, porque essa mesma bancada que se diz pró-vida não compreende que tem nossos sangues nas suas mãos. A garantia de um nome e do acesso a um banheiro é uma garantia de existência, primeiramente. De eu continuar vivo. A taxa de suicídio das pessoas trans é altíssima porque é uma sociedade inteira que nega a gente. A gente não tá pedindo nada demais, a gente só tá pedindo dignidade e respeito”, afirma Bernardo, que milita no Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat).

Segundo o estudante, em toda a UnB, ele só tem conhecimento da presença de seis homens e duas mulheres trans. “A gente só pede o direito de existir”, desabafa. Outra polêmica enfrentada no Congresso Nacional pelas pessoas transgêneras – ou seja, aquelas que não se identificam com o sexo biológico determinado em seu nascimento – é a resistência ao chamado Projeto de Lei João Nery, da Identidade de Gênero, de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). “O principal do projeto de lei é a ‘despatologização’ da identidade trans. Eu não sou um doente mental. Eu só quero o direito de viver. Parece até redundante, a gente fala, fala, fala, mas é uma coisa tão simples e objetiva”, diz Bernardo. “As pessoas enquanto cisgêneras têm garantido o direito à vida, o direito à dignidade, a um nome, à representatividade. A gente está exigindo isso, porque é um direito nosso.”

Uma segunda chance

Luciano Medeiros parou de estudar na 5ª série e voltou para a escola com o apoio do projeto Transcidadania
Luciano Medeiros parou de estudar na 5ª série e voltou para a escola com o apoio do projeto Transcidadania

Em São Paulo, Luciano Medeiros, de 37 anos, é um dos 100 transexuais e travestis integrantes do programa Transcidadania, lançado em janeiro deste ano pelo prefeito da cidade, Fernando Haddad (PT). Com bolsas de estudo de R$ 840 mensais por dois anos, ele e as outras pessoas trans tiveram a oportunidade de voltar para a escola para completar o que faltava do ensino fundamental ou frequentar cursos técnicos voltados para a inclusão no mercado de trabalho.

“Já pensou o que é ficar o dia inteiro na escola, sem poder ir ao banheiro, sob ameaça dos seus colegas e até dos professores? Voltei a estudar há quase três meses e não sofri nenhuma agressão, física ou verbal. No primeiro dia, fiquei tão feliz, tão emocionado, só por ser chamado pelo meu próprio nome, Luciano, sem ninguém me olhar diferente. E eu não escondo que sou um homem trans, porque preciso que as pessoas me respeitem dessa forma. Não quero que me aceitem, quero que me respeitem como cidadão”, conta Medeiros.

Cozinheiro e ex-morador de rua, o paulistano do Capão Redondo havia abandonado os estudos há 28 anos, sem completar a 5ª série. Hoje, vê nas aulas do ensino fundamental a possibilidade de alcançar um sonho: estudar gastronomia e se tornar um chef de cozinha.

“Já pensou o que é ficar o dia inteiro na escola, sem poder ir ao banheiro, sob ameaça dos seus colegas e até dos professores? Voltei a estudar há quase três meses e não sofri nenhuma agressão, física ou verbal. No primeiro dia, fiquei tão feliz, tão emocionado, só por ser chamado pelo meu próprio nome, Luciano, sem ninguém me olhar diferente. E eu não escondo que sou um homem trans, porque preciso que as pessoas me respeitem dessa forma. Não quero que me aceitem, quero que me respeitem como cidadão”, conta Medeiros.

Cozinheiro e ex-morador de rua, o paulistano do Capão Redondo havia abandonado os estudos há 28 anos, sem completar a 5ª série. Hoje, vê nas aulas do ensino fundamental a possibilidade de alcançar um sonho: estudar gastronomia e se tornar um chef de cozinha.

A deputada Maria do Rosário (PT-RS) critica o uso de argumentos religiosos para atacar a portaria e afirma que sua derrubada só intensificaria os já elevados índices de evasão escolar de pessoas trans. “Diante de situações complexas que a sociedade tem, de preconceitos muito presentes, este apoio que essas pessoas têm de poderem identificar-se como verdadeiramente são, a partir da sua identidade de gênero, é um apoio à continuidade de seus estudos na vida educacional”, avalia Rosário.

“O apoio não agride quem quer que seja e contribui para que o mundo educacional se pense como lugar de superação dos preconceitos”, completa a ex-ministra em entrevista ao iG. Assista  ao video:

 

A avaliação é compartilhada pela mestranda em Cultura e Diversidade pela Universidade Federal da Bahia Viviane V., de 30 anos. “A falta do direito ao nome social já expulsou muitas pessoas, que não aguentaram o tranco de todos esses constrangimentos, de ter que ficar mendigando respeito para o professor”, relata a transexual de São José dos Campos (SP), que é formada em Economia.

A trans Viviane V., de 30 anos, é mestranda pela Universidade Federal da Bahia
A trans Viviane V., de 30 anos, é mestranda pela Universidade Federal da Bahia

Mesmo com uma norma interna da UFBA que prevê o uso do nome social, Viviane conta que ainda passa por constrangimentos ao ter de apresentar na sua carteira de estudante seu nome civil, além do adotado posteriormente. Além disso, ela relata ter tido problemas para, entre outras coisas, receber sua bolsa de mestrado, por uma incompatibilidade nos registros da instituição.

De acordo com Viviane, todo o ambiente escolar é “hostil” às pessoas trans. Ela mesma trocou sua cidade natal por Salvador, quando a situação começou a ficar “muito tensa”, após seu processo de transexualização, a partir do qual se identificou publicamente como uma mulher transexual.

“A questão não é só acessar a universidade, é transformá-la. Somos poucas na universidade. Temos um sentimento muito grande de estar sozinhas, nossa existência é praticamente invisível. Mas, ao mesmo tempo, quando nós nos levantamos é uma visibilidade grande demais e nós começamos a ser atacadas”, desabafa, ao cobrar mais empenho das instituições responsáveis por aplicar a regra do governo federal.

“Muitas vezes, é feito um uso político dessa aprovação, mas com um leve desinteresse na implementação prática. Ou melhor, o interesse que se tem é em criar medidas para inglês ver. No fundo, é um remendo. Desconfio muito dessas normas institucionais”, critica.

Na opinião da mestranda, a “obrigatoriedade do nome social só arranha o problema”. Ela defende que todos os currículos escolares sejam repensados, desde o ensino básico. “A gente não deveria estar discutindo nome social, pois estamos deixando em segundo plano questões ainda mais importantes como o fato de que as pessoas saem da escola muito antes de sequer chegar na graduação. O que os currículos escolares estão pensando sobre gênero? Eles precisam ser repensados. Pega a educação física, por exemplo. Ela é completamente dividida em padrões onde essa diversidade não cabe”, avalia.

 

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