Somos todos Maju?

O que as hashtags #somostodos… mobilizam? O advento das mídias sociais trouxe consigo uma nova forma de demonstrar empatia, que de tempos em tempos se repete!  No Brasil, que eu me lembre: a primeira estratégia de criar vínculo por meio do que eu chamo marcadores de identidade foi a inclusão no nome nos perfis do termo Guarani Kaiowá. Depois se seguiram: #SomostodosTinga, #SomostodosCláudia, #SomostodosAmarildo, #SomostodasVerônica, #Somostodosprofessores! Também tivemos o #Somostodosmacacos em referência ao caso de racismo envolvendo o jogador do Barcelona Daniel Álves. A estratégia também foi adotada em nível planetário com #JesuisCharlie e o seu contrário #jenesuispascharlie, reações ao assassinato dos chargistas do semanário de humor francês Charlie Habdo e o #Wecanbreathe em apoio a Eric Garner, que foi morto pela polícia estadunidense depois de ser preso por vender cigarros ilegalmente.

Por  Márcia Maria Cruz via Guest Post para o Portal Geledés

Todos esses casos se seguiram a fatos de repercussão midiática e trouxeram questões para o debate público. Para assumir um dessas hashtags ou rejeitá-las, em geral, as pessoas mobilizam um quadro argumentativo. A identificação quase sempre nasce da indignação, mas não necessariamente passa pela experiência. Assumir como sua a experiência vivida de quem sofre só se torna possível graças a uma ideia de solidariedade. O uso das hashtags, que nasce nas redes sociais de forma espontânea, ganhou tamanha força que já foi incorporado às narrativas de diferentes veículos de comunicação. A Rede Globo, o veículo mais poderoso do Brasil e também o mais odiado, se rendeu ao #SomostodosMaju.

Em todos os casos, as hashtags dão visibilidade a situações de injustiça: Tinga e Daniel Álves foram vítimas de racismo, Cláudia e Amarildo vítimas da ação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a transexual Verônica foi transfigurada pela Polícia Civil. Agora Maria Júlia Coutinho, Maju, foi vítima de ataques racistas de usuários nas redes. Esses episódios nascem do racismo, escancara a desigualdade no Brasil e põe por terra a ideia de democracia racial. Mas vale destacar que há diferenças na construção da hashtags #SomostodosTinga e #Somostodosmacacos.

A segunda foi muito criticada por ser resultado de ação de uma agência de publicidade que percebeu o potencial da estratégia nas redes.

Nenhuma hashtag é assumida impunemente. O sentido de cada uma delas não é dado à priori, mas ganha determinadas nuanças de acordo com a maneira como o debate se desenrola na rede. Isso quer dizer que o sentido de  #SomostodosMaju, como variou o sentido de todas as hashtags de identificação. As hashtags têm a função de serem marcadores, palavras-chave para indexar assuntos e facilitar as buscas na rede. Nascidas com o Twitter, ganharam vida própria no Instagram e tomaram o Facebook, mesmo não tendo a função de indexação.

Com as hashtags as pessoas podem ser colocar nos lugares de outras, mas esse colocar-se costuma ser sempre frágil, pois não se pode com poucas palavras aglutinar o que é a experiência de cada um, ainda mais quando essa existência ganha visibilidade por uma denegação de direitos. Por essa limitação estruturante, as hashtags apresentam grande relevância para acionar o debate público. Na semana passada, observador do comportamento das pessoas nas redes, o Facebook lançou um filtro arco-íris que tem o mesmo princípio de criar empatia e solidariedade para quem assume colocá-lo no perfil.

A brincadeira de ser outro, mesmo não vivendo na pele a experiência do outro, mostra um emaranhado de possibilidades do ser e também revela as contradições de uma identidade una. Ao assumir a hashtag #SomostodosMaju, a Rede Globo precisa dizer de seu lugar na discussão do racismo no Brasil. Mesmo assumindo a posição politicamente correta, a emissora se torna foco do debate e não consegue se desvencilhar da forma como a questão racial é tratada por ela. As mídias sociais não deixarão passar despercebido que o diretor de jornalismo da emissora Ali Kamel escreveu o livro “Não somos racista”. Isso faz com que a adesão a uma hashtag seja algo sempre pendular na construção de sentidos. Embora inicialmente pareça uma forma de simplificar e até mesmo tornar opaca uma questão, sempre revela mais.

Certamente, alguns irão perguntar o quê de concreto a solidariedade virtual pode gerar na vida de alguém? Obviamente, não é uma questão que possa ser respondida de pronto e, talvez, metodologicamente nem seja possível acompanhar tantos desdobramentos. O certo é que as hashtags #somostodos… tem potencial de revelar questões para o debate público – o que a meu ver, por si, tem grande relevância. No entanto, em que medida tais hashtags banalizam a experiência? Em que medida alguém que nunca sentiu o peso do racismo cotidiano pode se colocar neste lugar? Quando as pessoas assumem essas hashtags deslocamentos são possíveis. É um passo importante para dar visibilidade a uma questão, mas que não prescinde de outros passos. Sermos todos Maju deveria também sermos todos a favor de medidas que coíbam os crimes de racismo em suas expressões cotidianas. Sermos todos Maju significa também reconhecer onde guardamos o nosso racismo e tentarmos superá-lo.

Assumir a hashtag #somostodosMaju não pode apagar a necessidade de reconhecer que falas e ações menos explícitas baseadas em uma ideia de superioridade perpetuam o racismo em nosso cotidiano. Em outras palavras,para que haja de fato deslocamentos, quem não vive na pele a experiência de injustiça precisa reconhecer os sistemas de opressões, entender o lugar que ocupa neste e se solidarizar também na desconstrução ou desnaturalização da ideia de soberania racial. Por fim, é urgente fazer coro para a importância da tipificação e punição dos crimes de racismo.

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