Caboclo Ló

Eu o conheci na Praça Olinto Leone. Não lhe perguntei onde morava nem o que fazia, não soube o seu de nome de batismo, apenas, disse-me que o tratasse por ”Caboclo Ló”, depois desse dia, nunca mais o vi, acho que não morreu, apresentava boa saúde, acho, também, que esteve em Itabuna de passagem, todavia, em pouco mais de uma hora de bate-papo o desconhecido deixou-me muito impressionado.

Enviado por Rilvan Batista de Santana via Guest Post para o Portal Geledés 

Não tinha aura de intelectual, caboclo, baixo e atarracado, não despertava, à primeira vista, empatia, uma pessoa comum como tantas outras pessoas que cruzam o nosso dia a dia, aprendi que “Se a aparência explicasse a essência, o sabor seria desnecessário”, portanto, não tomei susto de sua sabedoria, não julgo ninguém pela aparência, no entanto, para desencargo de consciência, confesso que o desconhecido me surpreendeu em conhecimento e informação.

Cedo, dia de domingo, a Praça Olinto Leone estava vazia de gente, somente os pássaros e os saguins em cima das árvores davam vida ao ambiente, Caboclo Ló estava sentado num banco do jardim defronte a agência do Banco do Brasil, me aproximei e de praxe o cumprimentei:

– Bom dia, senhor!

– Se o dia for bom, no final lhe direi! – fiz que não entendi, olhei pra o céu, tentei puxar conversa:

– Hoje, o dia promete!…

– Ontem, a previsão do tempo no JN deu muito Sol no Sul da Bahia!

– Parece… – ofereci-lhe um cigarro:

-Fuma?

-Não, não fumo!

– Nunca fumou, quando moço?

– Rapazinho, eu tentei impressionar as garotas, era costume na época, os galãs de cinema apareciam nos pôsteres soltando baforadas e com mulheres bonitas… Porém, conheci a minha esposa que é religiosa e me convenceu de deixar o vício e o fumo… – não o deixei terminar:

– O vício e o fumo!? Não é a mesma coisa?

– Não. O vício é dependência e a dependência é mais nociva do que a droga. O vício é um ato de vontade e se o sujeito exerce controle sobre sua vontade: o fumo, o álcool, a cocaína, a maconha, o crack e outros venenos não lhes farão mal, serão comparáveis a um animal felino não domesticado, que não causa dano vê-lo de longe e jamais lhe abraçar!

– De que maneira, se o consumo de droga é generalizado? Nem a polícia dá cabo!

– Professor, o homem é suas circunstâncias, circunstâncias boas e ruins influenciam o destino do homem. O mal é mais acessível, é necessário um espírito forte para não se contaminar com o nocivo. O aparelho repressor do estado sozinho não resolve o narcotráfico e o vício, mas, a educação, a religião e as políticas públicas de bem estar social podem mudar esse quadro de vicissitudes…

– Caboclo Ló – já com intimidade – as escolas, os governos e as igrejas já fazem isso!

– Não o suficiente!

– E fazer mais o quê?

– Trabalhar mais com a família!

– Como?

– Professor, a educação doméstica é tudo… Os pais têm que ser presença, exemplo, ultimamente, o pai ou a mãe deixa aos outros a educação dos seus filhos desde a creche!

– Ninguém sobrevive sem trabalho!

– Eu sei, mas tem que haver meio termo, não se pode colocar o trabalho acima da educação dos filhos. Alguns pais pensam mais no seu bem estar profissional e social, valorizam mais os bens materiais do que a educação, ao invés de homens de bem, homens de bens, para os pais pobres, que se ampliem os programas sociais… – interrompi:

– Desculpe-me Caboclo Ló, bem ou mal, essas ações têm sido colocadas em prática pelo governo e pela sociedade!

– Não em regime de guerra! Estamos numa guerra, a maldade humana não tem mais limite, os pais estão enterrando os filhos, as leis são fracas… Além da educação e da conscientização na mídia dos malefícios da droga, urge a necessidade de trancafiar os narcotraficantes por tempo integral, sem redução de pena, sem benefícios, tomar-lhe todos os bens, reduzir a maioridade penal e considerar os viciados doentes e sujeitos a internação hospitalar. Não se resolveria num passe de mágica, mas depois de algum tempo, o quadro seria outro! – tergiversei:

– Faz sentido…  – puxei outro assunto:

– O senhor soube do acidente de carro que uma criança foi vítima?

– Acidente? Não!

– O pai foi colocar o carro de ré na garagem e imprensou a criança de três anos na parede, socorreram-na, mas foi inútil, coisas do destino!

– Destino, professor!?

– O senhor não acredita no destino, na fatalidade!?

– Desculpe-me professor, mas não acredito em sorte, azar, determinismo. Sei que alguns fatos fogem às leis da razão, o livre-arbítrio também não explica, aí, atribuímos à fatalidade!

– Então, foi o quê?

– Olhe, tenho pensado nessas leis da existência humana e Deus, alguns “porquês” são irrespondíveis ou as respostas são meias verdades, se o senhor tivesse tempo, iria colocar o meu pensamento, aliás, o pensamento não é meu, li um texto, não me lembro do autor, lembro-me do título: “O homem nasce para ser feliz?…”, porém, comungo… – não o deixei terminar, era tudo que queria, pois tinha minhas dúvidas:

– Por favor, fique à vontade, é necessário que se dê tempo ao tempo…

– Não existe determinismo, destino, predestinação ou coisa que valha e o livre-arbítrio não explica tudo, mas existe um mundo de possibilidades determinantes do comportamento humano, das coisas do mundo e da existência de Deus!

– Possibilidades determinantes? Não entendi!…

– Sim, possibilidades que estamos sujeitos… Fatos que, às vezes, fogem ao entendimento lógico, de natureza absurda, contingenciais, ou, possibilidade que existe por si, essencial, necessária, “conceito puro e fundamental à unidade do juízo”, e as possibilidades

– O senhor está filosofando demais, não estou afeito a esse tipo de raciocínio, seja

– Professor, o senhor me disse que ensinou Matemática por vários anos, o exercício

lógico, os axiomas e as proposições abstratas foram o seu ofício, agora, me diz que não entende os princípios que lhe expliquei?

– Nunca gostei de raciocínios puros. O exemplo materializa o abstrato, por isto, peço-lhe que me dê exemplo desses princípios!

– A dedução é perigosa, particularizar os raciocínios dedutivos, corre o risco de sofismar, mas segundo o autor desse texto: “O homem nasce para ser feliz?…”, existe um “Mundo de Possibilidades”, desde o universo até o nascimento de uma flor!

– Então, essas “possibilidades” decidem o nosso destino?

– Sim e não!

– Sim, quando são reais, aí, aparece o livre-arbítrio; não, quando são contingenciais; aí, aparece o “destino”, a “predestinação”, o “determinismo” ou coisa que valha!

– Caboclo Ló, o senhor parece professor!

– Eu!? – deu uma gargalhada – Não, não sou professor, fiz o “curso primário”, mas o mundo foi o meu mestre, todavia, adquiri desde cedo o hábito de leitura e de escrita, isto me ajudou compreender o mundo. Mas, posso saber por que pareço um professor?

– O senhor é muito didático, cheio de detalhes…

– É necessária uma fundamentação lógica! – continuou:

– Vamos lá: “Possibilidade necessária” é Deus, Verdade Absoluta, indiscutível, que existe por Si, mesmo quando o ateu nega Deus, ele se contradiz, portanto, Deus é “Possibilidade necessária”. Se Deus existe, o Universo foi criado sob uma lógica universal, “Ele não joga dado”, há Leis que regem a natureza, porém, nada é imutável, exceto Deus, daí, surgem possibilidades…  – completou:

– A “Possibilidade real”, o nome por si justifica, é o que existe de real, um conjunto de circunstâncias reais, por exemplo, se alguém tem um pai que é músico ou gosta de música, existe a possibilidade real dele se tornar um músico e não um engenheiro… – eu o interrompi:

– Mas, se ele não quiser ser músico?

– Aí, entra o livre-arbítrio, porém, não se pode negar essa possibilidade! – continuou:

– Porém, é diferente de um acidente, de um naufrágio, de um vendaval, de um raio que cai na cabeça de alguém, etc., etc., são “Possibilidades contingenciais”. Veja o caso lamentável da criança que morreu imprensada: – o pai tinha carro, correu atrás do carro sem o pai vê-lo, houve o descuido do pai, a mãe foi negligente, ou seja, a criança não nasceu determinada morrer atropelada pelo pai, mas possibilidades e circunstâncias concorreram para o “fatalismo”.

Não mais repliquei, despedi-me de Caboclo Ló e fui embora.

Autor: Rilvan Batista de Santana – Academia de Letras (ALITA)

Licença: Creative Commons

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