Para não chamar atenção, milícia do Rio muda forma de assassinar vítimas

Parentes e testemunha sofrem e contam como vítimas desaparecem.
Aliança entre milícia e tráfico está evidente, segundo o Ministério Público.

Por Janaína Carvalho, do G1

Com a voz cansada, a dona de casa “M”, que prefere não ser identificada por questões de segurança, ainda se emociona ao falar do filho, auxiliar de pedreiro, que está desaparecido há quatro anos. “Não acredito em mais nada. Eles são todos marginais, a diferença é que têm carteirinha para matar. Pelo tempo que meu filho sumiu e que tudo aquilo aconteceu, já perdi a esperança de que a Justiça ou a polícia façam alguma coisa”, afirma a mãe do rapaz, que pode ser mais uma vítima da atual forma de matar da milícia. O G1 começa hoje uma série sobre os novos negócios e formas de atuação da milícia.

Há 10 anos, como forma de demonstrar poder e intimidar a população, as milícias — grupos paramilitares criminosos que no Rio funcionam sobretudo com a participação de policiais e bombeiros, da ativa ou não — executavam suas vítimas com tiro de fuzil no rosto e deixavam os corpos na rua. Hoje, eles escondem seus crimes e dificultam a localização dos corpos.

Segundo a família, o auxiliar de pedreiro, que hoje teria 22 anos, foi pego por milicianos que atuam na comunidade das Pedrinhas, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, próxima à região onde a família morava. O caso foi registrado pela Polícia Civil como desaparecimento, mas até hoje nem o rapaz nem outros três amigos que estavam com ele foram localizados.

Mudança de tática
De acordo com o Ministério Público do Rio de Janeiro, há cerca de seis anos a milícia começou a mudar de tática e, a partir de 2010, passou a ser mais difícil seguir os rastros desses grupos criminosos. Após a realização da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou essa atividade criminosa e acarretou na prisão de mais de 500 pessoas, entre elas dois parlamentares, a milícia começou a atuar de forma mais discreta.

“Até 2008, eles estavam agindo com muita truculência, deixando corpos na rua, justamente para mostrar que tinham poder. E eles tinham muito apoio de políticos, desembargadores, parlamentares e pessoas do poder Executivo. Mas nessa mesma época, dois jornalistas foram torturados no Batan (comunidade localizada em Realengo) e o deputado Marcelo Freixo conseguiu emplacar a CPI das Milícias”, lembra o promotor público Luiz Antônio Ayres, titular da promotoria de Santa Cruz.

As milícias existem desde a década de 70, mas começaram a ganhar força no Rio nos anos 90. Em 2005, a imprensa começou a denunciar os abusos cometidos por esses grupos e em 2008 eles chegaram a torturar uma dupla de repórteres de um jornal carioca na comunidade do Batan, na Zona Oeste. Atualmente as milícias fazem transporte irregular, e cobram taxas de moradores para fornecer serviços ilegais de TV a cabo, botijão de gás, cesta básica e segurança local.

Entre as consequências da CPI estão as prisões do ex-deputado Natalino José Guimarães e do ex-vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, acusados de integrar uma das maiores milícias da Zona Oeste.

Na época da CPI, dois grupos fortes dominavam a Zona Oeste, um denominado Liga da Justiça e outro comandando por Francisco César Silva Oliveira, o Chico Bala. Ambos disputavam o domínio na região e, por causa disso, era frequente a incidência de tiroteios em locais movimentados.

“Tinha tiroteio com fuzil e morte às 3h da tarde na rodoviária de Campo Grande. Com o tempo, eles verificaram que a postura deles era contraproducente. Se você tem um número grande de homicídios vai fazer com que a Secretaria de Segurança Pública priorize o combate a esse tipo de criminalidade. Quando se age de forma menos ostensiva, chama-se menos atenção. Matar e deixar o corpo no local facilita a apuração, enquanto se sumir com o corpo dificulta o trabalho da polícia”, explicou o promotor Marcos Vinícius Leite, titular da promotoria de Campo Grande.

Um dos moradores mais antigos do conjunto Habitacional Nova Sepetiba, na Zona Oeste, que viu a morte de pertoapós ficar sob a mira das armas da milícia, que tomou sua casa, revela a crueldade com que esses grupos agem e ainda desaparecem com os corpos das vítimas. “Eles matam dentro de casa, somem com teu corpo ou então enterram nesse cemitério aqui (no Centro de Santa Cruz). Fora os que são jogados fora e somem. Eu sei de casa lá, que você fica: ‘Cadê o dono dessa casa aqui?’ Já era. Debaixo de sete palmos, ou para dentro do rio junto com uma pedra”, diz o homem.

Em outubro, durante uma operação da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e de Inquéritos Especiais (Draco/IE) na Favela do Aço, em Paciência, agentes resgataram um vigilante que seria executado por milicianos. “Me levaram até determinado local, me amarraram e foram cruéis, muito violentos de falarem que iam cortar minha cabeça, que iam me picotar, várias coisas, coisas ruins mesmo”, contou.

De acordo com o delegado titular da Draco, Alexandre Herdy, o homem relatou que foi sequestrado na Favela Três Pontes, em Santa Cruz, levado para a comunidade vizinha, a Favela do Aço, onde foi amarrado perto de uma caixa d´água.

Desaparecidos aumentaram nos últimos 10 anos
Comparando o número de desaparecidos na Zona Oeste do Rio nos anos de 2005 e 2015 (de janeiro a outubro), houve um aumento de 125,60%. Nos 10 primeiros meses de 2005, foram registrados 496 casos na Zona Oeste do Rio e em 2015 foram 1.119. Já nas outras regiões da cidade (zonas Sul, Norte e Subúrbio) o aumento do número de desaparecidos passou de 959 em 2005 para 1.414 em 2015, um aumento de 47,44%.

O G1 entrou em contato com a Polícia Civil, mas até a publicação dessa matéria não havia obtido resposta sobre o número de pessoas que reapareceram nesse período.

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De acordo com um estudo desenvolvido pelo sociólogo e professor Ignácio Cano, responsável pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, há de fato um aumento no número de desaparecidos e indícios de que as milícias estejam sumindo com suas vítimas, mas ainda não há dados suficientes que comprovem que o aumento de desaparecimentos está relacionado com mudança de forma de atuação dos milicianos.

“Antes eles faziam um exercício de demonstração da violência para intimidar as pessoas e hoje, em função da reação do Estado, eles são muito mais discretos e não deixam os corpos à mostra ou com 40 balas. Agora, será que quando eles matam alguém e deixam o corpo numa vala, isso é registrado como desaparecimento? Isso a gente não sabe, porque se as pessoas têm certeza que alguém morreu, ficam até com medo de denunciar”, ressalta o sociólogo, lembrando que para entrar na estatística do ISP, é preciso fazer registro na delegacia.

Para as famílias das pessoas desaparecidas, a não localização de um corpo ou alguma informação sobre o paradeiro aumenta a esperança. “Meu maior sonho era poder abraçar meu filho de novo. Ainda tenho esperança de encontrá-lo vivo. Para Deus, nada é impossível. A filha dele ainda estava na barriga quando ele morreu. Hoje tem quatro anos e eu que crio”, afirma a mãe do auxiliar de pedreiro que está desaparecido há quatro anos.

Ainda de acordo com Cano, a violência ostensiva que acontecia antes não há mais porque a milícia entendeu que a visibilidade chamava a atenção e atraía a polícia. “Começaram a contratar mais jovens da comunidade para fazer o trabalho do dia a dia, e o miliciano só ia quando há um problema, enquanto antes ele estava lá o tempo todo”, ressalta o sociólogo.

Associação com o tráfico de drogas

Nos últimos anos, a aliança entre milicianos e o tráfico de drogas ficou evidente devido a algumas circunstâncias. No ano passado, a polícia do Rio identificou uma carga de drogas que trazia o símbolo de uma grande facção criminosa ao lado do desenho usado pela maior milícia do estado.

“Teve uma época que uma determinada facção criminosa sabia que era questão de dias para ser invadida pela rival, não tinha como segurar. A solução foi se associar à milícia. Melhor perder metade do que perder tudo. Então, eles fizeram essa associação e, como já tinham tudo acertado com o pessoal de Bangu (bairro da Zona Oeste), a aliança passou a valer para todas as favelas dominadas pelo mesmo grupo criminoso, de Santa Cruz até Bangu”, ressaltou o promotor Luiz Antônio.

Após as prisões de grandes líderes da maior milícia da Zona Oeste, como Ricardo Teixeira Cruz, o Batman, Toni Ângelo de Souza Aguiar e Marcos José de Lima Gomes, o Gão, todos ex-policiais, alguns nomes passaram a ser cogitados para assumir o comando. Um deles era o ex-traficante Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes, que conseguiu ganhar prestígio entre os milicianos após tomar a favela Três Pontes do tráfico.

“Ele é o que se chama de pé inchado, o sujeito que não é oriundo das forças policiais e de segurança, mas ganhou muita confiança nesse processo de diversificação de pessoal da milícia, justamente porque demonstrou lealdade e tomou território da maior facção criminosa do Rio. Então, quando o Gão foi preso, resolveram que por uma questão de menor exposição, o Carlinhos Três Pontes assumiria a Liga da Justiça”, diz o promotor.

Não há relatos de que os próprios milicianos estejam atuando na venda de drogas, mas, segundo o MP, eles têm cobrado taxas para que o tráfico continue atuando em determinadas comunidades da Zona Oeste. “Você quer vender? Tudo bem, mas você vai ter que me dar um percentual para vender aqui na minha área”, explicou o promotor Marcos Vinícius Leite.

Como os líderes deixaram de se expor, nos últimos houve cooptação de traficantes para o seio da milícia. “Quando a Liga da Justiçatomou a Carobinha, eles mataram vários traficantes, outros fugiram e quem ficou foi aceito no seio da milícia. Houve isso também deles trazerem para o grupo. Eles deixam de traficar e passam a atuar como milicianos”, explicou.

Material apreendido em operação contra milícia no Rio (Foto: Káthia Mello / G1)
Material apreendido em operação contra milícia no Rio (Foto: Káthia Mello / G1)

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