Dizem que `num´pega, mas um dia ainda vão aprender que pega

Domingo passado, folheando revistas velhas, bati o olho numa manchete sobre cânceres e infecções: “Você pode ‘pegar’ câncer?”. Reli sorrindo, do começo ao fim. Ali estava algo que faria a completa satisfação da vovó Maria, que não deixava criança ir a velório de quem morria “daquela doença feia” e sentenciava: “Dizem que num pega, mas um dia ainda vão aprender que pega”.

por Fátima Oliveira

Ela “quase” acerta. Podemos “pegar” cânceres, mas não em velório! “Um em cada cinco cânceres está ligado a infecção. Suspeito que acharemos mais”, afirma o dr. Harold zur Hausen (prêmio Gairdner do Canadá e prêmio Nobel de Medicina 2008), alemão de cujos estudos resultou a vacina contra o HPV (Papiloma Vírus Humano), em 2006. Ele descobriu que “apenas duas cepas do vírus, o HPV 16 e o HPV 18, eram encontrados em 70% dos casos de cânceres cervicais (de útero)”.

É ler sobre o tema e na hora pensar em vovó, que já morreu. Imagino o sermão: “Num te disse que doutor num sabe de nada. Se ‘subesse’, num morria!”. Uma frase dita mil e uma vezes, mas a primeira é inesquecível. Vovó era hipocondríaca, mas indisciplinada no uso da medicação. Nunca tomava uma caixa inteira de remédio, mas era cuidadosa com a saúde de familiares. Quando menstruei pela primeira vez, estava de férias, mas, antes de voltar para a escola, em Colinas, fomos ao médico.

“Vovó era exímia em contar casos e casos de loucuras de mulheres que não tiveram ‘cautela’ durante as regras. Um terrorismo. ‘Suspensão’ (parar de menstruar sem ser gravidez) era doença séria. O médico disse que muitas meninas menstruavam pela primeira vez e poderiam ficar alguns meses sem menstruar. Não era doença. Vovó ficou danada: ‘Onde já se viu gastar tanto dinheiro para vir ao doutor e ele não passar nenhuma jalapa? Doutor num sabe de nada. Se ‘subesse’, num morria’. (“As ‘regras’ e a camisinha”, O TEMPO, 31.12.2003)…

Ela sempre minimizava o saber médico. E piorou depois que médico deixou de ser “bicho de sete cabeças”, pois eu, sua neta, era médica. Embora confiasse muito em minha opinião e não tomasse um “caché” sem que eu dissesse sim, ela não dava muita trela para médico. Eu poderia estar no fim do mundo, teria de ser encontrada na hora em que ela queria perguntar algo!

Já idosa, diabética, hipertensa e após vários acidentes vasculares cerebrais, foi hospitalizada às pressas para uma colecistectomia. O cirurgião disse-lhe que ela precisava tomar sangue. “Espera aí, doutor, já falou com minha neta? Só tomo sangue depois dela dizer que posso…”. Indagada, segundo ela em tom de empáfia e menosprezo, se a tal neta era médica, respondeu:

“Igualizinha a vosmecê. Pra mim mais, porque é minha neta, eu criei e não vai fazer nada de errado comigo. Cê sabe, doutor erra de quando em vez. Ela mora lá no Belo Horizonte. De certeza vai tá aqui no primeiro avião que sair de lá. Vou esperar”. Aprontou, pintou e bordou. Antes de viajar, telefonei e perguntei ao médico se era seguro ministrar sangue. Ele riu.

“Você bem sabe que aqui, não!”. Era meados da década de 1990. “Até dona Maria, que é esperta, sabe. Ao pedir para esperar a sua presença, ou anuência, disse: de tudo dessas coisas desses ‘hospitalizinhos’ (sentiram o desdém?) daqui, a única coisa que ela diz que é perigosa é tomar sangue. Tem essa Aids, né?”.

Enfim, não foi ministrado o sangue, cuja indicação não era absoluta, e ela se recuperou bem. Naquela época, a segurança do sangue no Brasil era coisa de grandes centros médicos… Ainda é.

Fonte: O Tempo

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