Gonzaga, de pai pra filho – Por Cidinha da Silva

por Cidinha da Silva

Ana Pi, me perdoe, mas se o tempo me fizer escolher entre Gonzaga e Django, não tenho dúvidas, optarei pelo primeiro. A chance do Tarantino é que o Gonzaga, de Breno Silveira, passou na TV, em quatro capítulos, num desses convênios entre a indústria cinematográfica e a televisiva.Gonzaguinha, filho do Gonzagão, é um músico que curti na voz das grandes cantoras brasileiras. Gonzaguinha mesmo, o intérprete, só conheci no movimento pelas Diretas. As músicas dele eram mantra, a presença era mágica, consistente, não era como a de Milton, só amor. Gonzaguinha fazia a guerra por amor.  Mas só me debrucei sobre a obra interpretada pelo próprio autor depois de sua morte.

A triste partida foi a primeira música do Rei do Baião que aprendi a cantar, na escola: “setembro passou, outubro e novembro, já tamo em dezembro, meu deus, que é de nós”? Assim fala o homem do seco Nordeste…” Estudamos peças da obra dele junto com Vidas secas, do Graciliano, na aula de Português da antiga 7a série. Lembro-me que o verso “nós vamo a São Paulo, viver ou morrer”, me impressionou muito

Luís Gonzaga sai de Exu, pequena cidade do interior de Pernambuco, para se comunicar com o povo, religar a alma do sertanejo desterrado no Sul maravilha a seu rincão natal, tarefa exúnica, cumprida com galhardia. Gonzagão transformou-se em um dos maiores nomes da cultura popular brasileira. Amora Pêra, filha de Gonzaguinha, neta de Gonzagão, define o avô como parte do chão brasileiro. Se não tivesse existido Gonzagão, o Brasil seria outro, não seria o que é.

As dimensões raciais da vida de Gonzagão, entretanto, são inexploradas, cumprindo a regra do cinema nacional e das culturas de massa e de elite do Brasil. Gonzaga, um jovem negro, é forçado a sair de Exu para evitar a morte vingativa de um coronel. Seu crime? Ter ousado apaixonar-se e mais ainda, ter-se julgado homem o suficiente para desposar a filha branca de um coronel.

Podem até chamar Gonzagão de mestiço se for mais conveniente para vocês, mas o coronel, pai da musa branca, e a própria mãe do sanfoneiro sabiam que passadas as 18:00 chega a noite. A condição racial, muito mais do que a pobreza, está posta no ultraje do jovem Gonzaga ao coronel, haja vista que este não o mata em consideração a Januário (raiz da pobreza de Gonzaga), sanfoneiro afamado e respeitado, pai do insolente mancebo. A mãe de Gonzaga confirma: “tu é um sem-eira-nem-beira, mas não é só isso. Tu é um mulato pobre que nem tem onde cair morto. A moça é rica, branca e letrada. Tu mal sabe ler.” A musa de Gonzaga é branca, por isso não é para o bico do moço. Há aqui um universo a explorar, mas o filme passa por ele, incólume.

Mais à frente, Gonzaga, adulto, conhece Odaléia, seu grande amor, enamoram-se, casam-se, têm um filho e ela adoece e morre. Num flash de memória daquele amor, focaliza-se uma foto do casal na vida real e nela vemos que a mãe de Gonzaguinha era negra, com um fenótipo muito diferente daquele de Nanda Costa, atriz escolhida para o papel.

Afora este deslize, o filme é lindo, cheio de emoção, boa música, grandes atrizes e atores. Os diálogos e interditos são fortes, por exemplo, o pensamento de Gonzaga consigo mesmo no período do Exército: “eu era tão pobre que o Exército pra mim era regalia.” Quando o pai vai visitá-lo no quartel e ele pede a benção na despedida, depois de receber do filho um maço de notas, com a recomendação de que chegassem às mãos da mãe, o pai responde: “Deus te faça feliz.” Antes desse episódio era comum que o pai dissesse no momento da benção: “Deus te faça homem.”

 

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